Título: Desigualdade e pobreza: salário mínimo, fator perd
Autor: Prado, Antonio
Fonte: Valor Econômico, 03/10/2006, Opinião, p. A16

Em 1944, foram publicados dois livros marcantes "A grande transformação", de Karl Polanyi, e "O caminho da servidão", de Friedrich Hayeck. O primeiro mostra que os mercados capitalistas só foram criados no século XIX, por ação dos Estados Nacionais; o outro, defende o seu caráter natural. Para Hayek, a beleza transcendente dos mecanismos de mercado não deveria ser deformada pelas ações do Estado, pois isso poderia conduzir à destruição da liberdade e dos estímulos ao progresso econômico. Por sua vez, Polanyi via o mercado auto-regulável como um risco que levaria a trajetórias sociais, econômicas e políticas catastróficas, caso não fosse constrangido por leis. Temores de quem testemunhou duas guerras mundiais e uma grande depressão.

Desde meados do século XIX, após a criação político-institucional dos mercados fundamentais do capitalismo contemporâneo (trabalho, dinheiro e terras), há um contra-movimento ao mercado auto-regulável, iniciado não apenas por trabalhadores sufocados pelo ´moinho satânico´, mas também pelas elites expropriadas nas crises deflacionistas do século XIX e início do XX, pois nem os empresários suportavam tanta liberdade de ação e massacres indiscriminados de seres humanos.

Apesar das mudanças estruturais dramáticas ocorridas nas economias capitalistas nos últimos 150 anos, há ainda os que defendem o desmantelamento da institucionalidade que tornou o capitalismo contemporâneo possível. Não se trata da proposição de aperfeiçoamentos no que existe, mas de uma agenda de regressão da história. Isso tudo nem sempre aparece com a crueza dos debates do século XIX, mas na forma de elegantes modelos quantitativos e de consensos tecnocráticos. Reduzir a proteção social e a regulação do mercado de trabalho é um mantra nesses simpósios. E o salário mínimo é a regulação básica criada para evitar sociedades com desigualdade extrema, logo é alvo preferido das críticas liberais.

Há hoje no Brasil um importante debate sobre esse papel do salário mínimo na redução da pobreza e da desigualdade. Nada de novo. O frisson corrente deve-se à surpreendente redução da pobreza e da desigualdade, após décadas desanimadoras. Os pesquisadores buscam as causas desse fenômeno, principalmente em um país em que a desigualdade de rendas é tão permanente, além de imensa. Se o PIB per capita pouco avançou em mais de 20 anos de estagnação econômica relativa, o que explica quedas tão substantivas na indigência, na pobreza, nas amplitudes de renda e também na desigualdade medida pelo índice de Gini?

Estudos recentes, realizados por várias instituições, buscam estabelecer fatores dessas quedas e revelam a importância das transferências sociais públicas neste processo. Alguns estudos do Ipea medem com precisão a contribuição de cada fator explicativo. Facilidades da era da informática. Mas se esses estudos contribuem, em parte, para desvendar o mistério, criam outro, o da mitigação do salário mínimo como fator explicativo.

Quando é incorporado no modelo analítico, o salário mínimo entra como problema. Por exemplo, para o pensamento dominante no Ipea, ele é sub-potente para combater a pobreza, pois seus efeitos "vazam" para os não-pobres; para o CPS-FGV, ele atingiu sua eficácia máxima e não é mais capaz de reduzir a taxa de miséria, que caiu abruptamente de 24% para 18%, no decorrer de apenas dois meses de 2004. Para os analistas neoclássicos da velha guarda, ele não tem efeito nenhum no longo prazo sobre a pobreza, pois gera desemprego e informalidade, neutralizando os efeitos de curto prazo do seu crescimento.

-------------------------------------------------------------------------------- Políticas de redução das desigualdades no mercado de trabalho devem ser mantidas, assim como as de redução da pobreza --------------------------------------------------------------------------------

A velha tese da indução à informalidade via aumento real do mínimo é colocada abaixo pelos dados dos últimos anos, pois o emprego formal vem subindo desde o ano 2000. E, a partir de 2003, a elasticidade emprego formal do PIB passou a ser superior a 1 (quando o PIB sobe, o emprego formal sobe ainda mais rápido), revelando uma trajetória espetacular de formalização. Nesse contexto, é preciso apresentar alguns fatos nada estilizados. O salário mínimo real subiu cerca de 100% de 1995 a 2006 (160% em relação à cesta básica) e, neste mesmo período, a desigualdade, medida pelo índice de Gini, caiu de 0,673 para 0,544. O mesmo acontece com outras medidas de desigualdade.

A relação da desigualdade de rendas medida pelo Gini e o salário mínimo real é inegável. Uma simples regressão linear permite estabelecer essa correlação, como demonstra o gráfico. Sobe o salário mínimo real, cai a desigualdade. Em que período? Exatamente de 1995 a 2005.

Os que defendem a desimportância do mínimo ou seu esgotamento como política pública estabelecem uma oposição entre ele e a política do Bolsa Família. Sem sentido, pois que atendem a problemas distintos. No Brasil, existem pobres no mercado de trabalho e excluídos do mercado de trabalho, que são pobres e indigentes. Retirar recursos dos primeiros para transferi-los aos últimos, não é justo. As políticas de redução das desigualdades no mercado de trabalho devem ser mantidas, assim como as políticas de redução da pobreza entre os excluídos. Essas últimas têm caráter emergencial, pois o objetivo último deve ser integrá-los ao mercado de trabalho, através do crescimento econômico sustentado, das políticas públicas de educação, de capacitação profissional, de saúde, de habitação e desenvolvimento urbano, de transportes e de combate às desigualdades de gênero e de raça.

O orçamento público é limitado e disputado pelos movimentos sociais, pelo interesse público e pelos lobbies empresariais. Melhor do que esquecer a importância do mínimo na redução da pobreza e da desigualdade é debater com transparência as prioridades do gasto público. Há um conflito distributivo pelo orçamento público e há restrições fiscais. Mas, enquanto o país gastar mais de 8% do PIB com o serviço da dívida pública, devido a juros reais de difícil absorção, soa mais correto afirmar que o problema não é o salário mínimo, mas a política monetária restritiva. O salário mínimo tem subido em ritmo adequado e os resultados estão aparecendo. Com a inflação sob controle, é preciso agora induzir o crescimento e ampliar o ritmo de geração de empregos, condições que constituem os fatores essenciais para uma redução permanente da desigualdade e pobreza.

Antonio Prado é economista, professor do Departamento de Economia da PUC-SP (licenciado), foi Coordenador da Produção Técnica do Dieese nos anos 90 e é responsável pelo escritório do BNDES em Brasília.