Título: O México em movimento
Autor: Marcovitch, Jacques
Fonte: Valor Econômico, 03/10/2006, Opinião, p. A17

Antes de considerarmos o conflituoso quadro político atual no México, é importante recordar que, há seis anos, a eleição de Vicente Fox encerrou uma longa e dolorosa fase na história daquele país. A sua vitória sobre o Partido Revolucionário Institucional, que ocupava o poder há mais de 70 anos, foi uma bem-vinda evolução dos costumes políticos.

É compreensível a frustração hoje quase generalizada entre os avaliadores de Fox. Até mesmo o programa de Felipe Calderón, candidato do governo, insinua fracassos do apoiador. Com a ressalva quase protocolar de que muito foi realizado, mas é necessário fazer mais, acaba de alguma forma corroborando o balanço negativo da primeira gestão do PAN.

A plataforma do vencedor tem o mérito da análise substantiva e da oferta de indicadores para embasar o seu conteúdo. A conceituação de um "México ganhador", que busque permanentemente a prosperidade, está em várias páginas. Mesmo com a ressalva de que se trata de documento redigido para fins de propaganda política, é inegável que temos nesta formulação uma chave para abrir caminhos em todos os países da América Latina.

O documento é crítico e não ufanista. Realça o desrespeito ao estado de direito no México e seu baixo índice de aplicação das leis. Cita expressamente a classificação internacional feita pelo World Economic Forum sobre o apego à legalidade, na qual o México é reprovado e vem baixando cada vez mais a sua posição. Dentre 110 países considerados, caiu do 63º para o 69º lugar, situando-se abaixo do Egito e de Gana, por exemplo. Isto se reflete na situação do sistema prisional, que recebe (e não reabilita) cada vez maior número de infratores. No final de 2004, 82 mil réus estavam em prisão preventiva, custando ao erário, a cada dia, o equivalente à manutenção de 250 mil estudantes na escola.

Calderón não esconde que o desempenho econômico de seu país durante 50 anos, incluindo o período Fox, foi insatisfatoriamente administrado. É reconhecido como válido um Índice de Confiança para investimentos estrangeiros diretos, elaborado pela AT Kearney, empresa internacional de consultoria. Nele se vê que o país acha-se na 22ª posição, abaixo da Polônia, da República Checa e do Brasil.

Apesar de sua riqueza energética, informa o Programa de Calderón, o México ainda importa gasolina, petroquímicos e gás natural. Isso acarreta despesas elevadas para o setor produtivo. A estatal Pemex apresenta defasagem tecnológica e é uma das menos produtivas do mundo. Calderón anuncia um novo regime fiscal que traga para a empresa maiores recursos e induza melhores práticas corporativas.

Calderón concede largo espaço aos problemas de infra-estrutura. Admite que os Estados Unidos, como sócio comercial do país, tem sete vezes mais quilômetros de estradas por habitante que o México. Esmera-se, de forma transparente, na exposição de outras defasagens. A rede ferroviária mexicana cresceu apenas 4,5% nos últimos 25 anos. Os aeroportos nacionais estão saturados e os portos apresentam baixíssima capacidade intermodal, subutilização e reduzida importância no suprimento de mercadorias.

A questão social, apontada pelo candidato vencedor, depois do pleito, como prioridade máxima, já era colocada enfaticamente no roteiro prévio. Cerca de 11 milhões de mexicanos carecem de água potável e 23 milhões não dispõem de saneamento básico. A distribuição de renda no país é uma das mais precárias da América Latina. Os 10% mais ricos no país recebem 35,6% da renda nacional, enquanto aos 10% mais pobres cabe apenas 1,6%. Calderón propõe ampla revisão dos programas sociais em andamento para adquirirem mais foco e ampliarem o seu alcance.

-------------------------------------------------------------------------------- O Banco Mundial calcula que os mexicanos domiciliados na potência vizinha remetem cerca de 18 bilhões de dólares por ano para o seu país de origem --------------------------------------------------------------------------------

O México está no 106º em um ranking de 122 países no que diz respeito à qualidade de água. A disponibilidade per capita de água potável caiu de 18,300 metros cúbicos em 1950 para 4,547 metros cúbicos em 2002, e continua declinando. Nos últimos 60 anos, houve uma perda de 75% nas florestas e matas do país. Um cálculo do período mais recente (1993 a 2002) registra que a superfície florestal diminuiu de 36,6 para 33,4% do território nacional. Chama a atenção que a plataforma de Calderón não faça referências a um sistema de controle da devastação.

As propostas ambientais contemplam genericamente o uso de tecnologias limpas, redução de enxofre na gasolina, preservação de recursos naturais e combate a incêndios. Parece não haver no México a propriedade de florestas pelo Estado, pois Calderón trata de apoio econômico aos "proprietários de bosques e matas" em suas eventuais iniciativas sustentáveis para a preservação florestal. Recomenda-se a mitigação da emissão de poluentes, com o aproveitamento de oportunidades no mercado internacional como a oferta de cotas de carbono na esfera do Protocolo de Kyoto.

O problema da migração para os Estados Unidos é, para o bem ou para o mal, um desafio na mesma ordem de grandeza do crescimento econômico. O Banco Mundial calcula que os mexicanos domiciliados na potência vizinha remetem anualmente cerca de 18 bilhões de dólares para o seu país de origem. Calderón propõe apenas a criação interna de empregos, como forma de evitar a emigração de trabalhadores.

Cabe recordar que o México, em 1848, em tratado assinado com os Estados Unidos, cedeu àquele país os territórios da Califórnia, Utah e Nevada, bem como partes do Colorado, Arizona, Novo México e Wyoming. Isso permite que a direita americana imagine a imigração como tentativa de reocupação dessas terras, enquanto setores da esquerda romântica idealizam o fenômeno com os olhos postos numa lenda. No movimento pelos direitos civis dos mexicanos residentes no EUA, durante os anos 60, militantes invocavam o nome de Aztlan, cidade mítica dos Astecas, enquanto propunham uma "reconquista" do sudoeste americano.

Estes são aspectos programáticos do governo Calderón, caso haja governo. Do ponto de vista legal a posse está fora de dúvidas. A Corte Eleitoral decidiu, em setembro, pela validade do pleito, mas os partidários de López Obrador ameaçam a transição e a governabilidade. Facções inconformadas assumiram o controle de Oaxaca, impedindo o funcionamento do Executivo local. Rodovias vêm sendo bloqueadas e prega-se abertamente a desobediência civil.

Politicamente, o governo Calderón empreenderá grandes esforços por um governo de coalizão. Fica bem claro que isto implica um acordo entre dois ou mais partidos no Congresso, de modo a evitar as dificuldades enfrentadas por Vicente Fox. O governo de coalizão não se deve restringir a um ministério plural. Para o novo presidente é imperioso um sólido apoio parlamentar que garanta a governabilidade e as grandes reformas requeridas pelo país.

O México está em movimento. O desafio do novo governo é que seja para frente, evitando a estagnação e consolidando a democracia.

Jacques Marcovitch, professor da Universidade de São Paulo da qual foi Reitor. Autor de "Pioneiros e Empreendedores: A Saga do desenvolvimento no Brasil" e "Para Mudar o Futuro: Mudanças Climáticas, Políticas Públicas e Estratégias Empresariais".