Título: Bilhões pelo ralo
Autor: Verdini, Liana
Fonte: Correio Braziliense, 31/10/2010, Economia, p. 17

O desperdício é uma praga que afeta as obras públicas brasileiras, encarece os orçamentos e põe os cidadãos em perigo. Segundo especialistas, a sociedade precisa se mobilizar para combater o problema

Obra pública sempre foi um ótimo instrumento para impulsionar a economia. Aumenta as contratações de pessoas e mexe com a indústria em geral e o comércio local ao estimular a venda de materiais e serviços. O grande problema é que, no Brasil, as construções são acompanhadas de um fantasma: o desperdício, sobretudo em anos de eleição, como este, em que o governo não mede esforços para turbinar a candidatura oficial à Presidência da República.

Não há estatísticas a respeito, mas uma parcela significativa dos contratos está virando pó e fazendo disparar os orçamentos iniciais. Levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) em 15 grandes obras, com orçamentos que somavam R$ 7,65 bilhões, mostra que R$ 1,35 bilhão (17,6% do total) correspondia a sobrepreço. Elas estavam em andamento em 11 estados e no Distrito Federal.

Gestão inadequada, projetos deficientes e mão de obra especializada em número reduzido também contribuem para o agravamento do desperdício. Além disso, o baixo envolvimento da sociedade, que pouco denuncia, e o interesse dos políticos, que disputam os recursos e a glória de ter levado as obras para seus redutos eleitorais, só pioram a situação.

As construções feitas aos pedaços sujeitam seus usuários a armadilhas perigosas. No Distrito Federal, não faltam exemplos. Um caso é o da BR-450, a Estrada Parque Indústria e Abastecimento (Epia). A obra foi iniciada em dezembro de 2007 e, diariamente, submete os passantes a contorcionismos para escapar de acidentes. O tráfego está liberado, sem que parte do asfalto tenha recebido as faixas de sinalização pintadas e sem que as pontes tenham sido alargadas de forma a alinhá-las com a pista extra construída.

A obra, de R$ 63 milhões, custou ao Governo do Distrito Federal (GDF) a contrapartida de R$ 6 milhões. Segundo a assessoria de imprensa do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), os R$ 57 milhões do governo federal foram repassados ao GDF. Procurada, a Secretaria de Transportes do DF repassou a incumbência de uma explicação ao Departamento de Estradas e Rodagens do DF (DER-DF). Já o DER-DF, responsável pelo gerenciamento e pela fiscalização do que foi feito, até o fechamento desta edição não respondeu ao pedido de esclarecimento.

Educação

Para o presidente do TCU, ministro Ubiratan Aguiar, por trás desse pouco caso com o bem público está uma questão de educação. Precisamos ter uma pátria cidadã. Se tivermos uma nação em que todos querem levar vantagem em tudo, não conseguiremos superar essa situação, diz. O ministro lembra que a legislação atual determina a elaboração de tabelas pelo governo e pelo órgão contratante com os valores a serem pagos pelos produtos. Essas tabelas permitem a lucratividade no negócio. Se há superfaturamento, isso é a busca do ter mais. Esquecem-se de que estão retirando o dinheiro que vai fazer falta nos programas sociais, nos hospitais, nas escolas.

O coordenador do Núcleo de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, Paulo Resende, considera o desperdício em obras públicas um problema grave. Há um aspecto cultural que só agrava a situação, diz. Nossa história nos mostra que vivemos em ciclos e a infraestrutura não escapa disso. Nos acostumamos a abandonar determinados setores por um boom em outros. Foi o que ocorreu com a nossa malha ferroviária, abandonada em benefício das rodovias.

Isso tudo é agravado pela ideia de que é mais importante construir do que manter. Ao desvincular os contratos de construção do de manutenção, temos as empreiteiras lutando pelos dois. Assim, a construção não deve ser durável, que é para precisar logo de manutenção, constata. Na Alemanha, onde o professor atuou em uma universidade como visitante, a primeira autoestrada, construída em 1930, até hoje está intacta e nunca passou por restauração em seus 80 anos de vida. Lá, a rodovia é construída em cima de uma camada de aproximadamente um metro e meio de concreto armado.

O presidente do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Distrito Federal (Crea-DF), Francisco Machado, percebe a inexistência de uma cultura de planejamento, a ausência de projetos e a falta de metas definidas como fatores que estão por trás do desperdício, além de uma ética profissional questionável e da escassez de moralidade.

Simplicidade

Responder ao desafio de mudar esse cenário não é difícil, na avaliação de Paulo Resende. A solução é de uma simplicidade absoluta: associar os contratos de construção com os de manutenção com remuneração pelo resultado e não pela intervenção. Isto é, quanto menos manutenção for feita, mais o contratado ganha. No somatório, fica bem mais barato, assegura. Ele conta que esse sistema vem sendo adotado em Minas Gerais e em São Paulo.

Para o vice-presidente da Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Ralph Lima Terra, a saída é melhorar a gestão na fase de planejamento de orçamentos e cronogramas e também na fase de elaboração de projetos de engenharia. A Abdib defende o uso de seguro-garantia, com a transferência para as seguradoras da análise do perfil financeiro e técnico das empresas que participam das concorrências. Isso garante juridicamente a entrega do bem ou serviço contratado e diminui o risco de haver obras inacabadas ou abandonadas, destaca.

E o cidadão precisa se envolver mais, defende o presidente do Crea-DF. Ele tem o dever de fiscalizar e de denunciar sempre que perceber algo de errado. Canais para se queixar, lembra Machado, existem hoje em grande número. As pessoas podem denunciar as irregularidades ao Crea, a organizações especializadas e aos próprios Tribunais de Contas. Todos estão abertos a receber a reclamação e a apurar o que está ocorrendo. A sociedade precisa se engajar nessa luta.

FESTIVAL DE SUPERFATURAMENTO

Relação de 15 obras em que o Tribunal de Contas da União detectou indícios muito expressivos de desvios.

Os contratos somam R$ 7,65 bilhões, com R$ 1,35 bilhão em sobrepreço 17,6% do total

Obra - Estado - Valor do contrato - Sobrepreço - %

Construção da BR-163 PA - R$ 664,8 milhões - R$ 334,5 milhões - 50

Duplicação da BR-101RN, PB e PE - R$ 1,5 bilhão - R$ 236 milhões - 16

Metrô de Fortaleza CE - R$ 681 milhões - R$ 133 milhões - 19

Angra 3 RJ - R$ 1,4 bilhão - R$ 120 milhões - 9

Metrô de Salvador BA - R$ 401 milhões - R$ 100 milhões - 25

Terraplenagem da Refinaria Abreu e Lima PE - R$ 429 milhões - R$ 94,6 milhões - 22

Adutora Pirapama PE - R$ 420,7 milhões - R$ 69,5 milhões - 16

BR-342 ES - R$ 132,9 milhões - R$ 64,6 milhões - 49

Linha 3 do sistema de trens urbanos RJ - R$ 715 milhões - R$ 57,6 milhões - 8

Aeroporto de Vitória ES - R$ 370,8 milhões - R$ 44 milhões - 12

Canal Adutor do Sertão AL - R$ 245 milhões - R$ 37,6 milhões - 15

Edifício-sede do TRF de Brasília DF - R$ 477,8 milhões - R$ 35 milhões - 7

Recuperação das ruas da Zona Franca de Manaus AM - R$ 72,5 milhões - R$ 10,5 milhões - 14

Contorno Rodoviário de Foz do Iguaçu PR - R$ 74,7 milhões - R$ 10 milhões - 13

Hospital da Mulher de Fortaleza CE - R$ 66,2 milhões - R$ 4,9 milhões - 7

Fonte: TCU