Título: Cristina disputa a herança
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 31/10/2010, Mundo, p. 26

Viúva de Néstor Kirchner reúne forças para assumir a liderança do peronismo e lutar pela reeleição em 2011

Após a morte do homem forte do Partido Justicialista, Néstor Kirchner, a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, terá que convencer o partido de que é a sucessora natural do marido. Com eleições presidenciais marcadas para outubro de 2011, analistas políticos concordam que Cristina terá de travar uma batalha contra várias figuras de peso para se alçar no histórico partido fundado nos anos 1940 pelo caudilho Juan Domingo Perón, com cunho nacionalista e forte base sindical.

O professor de Relações Internacionais Raúl Bernal-Meza, da Universidade de Buenos Aires (UBA), considera que a deterioração do poder dos Kirchner os levava perigosamente a depender cada vez mais do apoio do sindicalismo corporativo de direita muito questionado pela corrupção e distante da defesa dos interesses dos trabalhadores. É um setor que claramente representado pelo atual secretário-geral da CGT, Hugo Moyano, mas que também estava apostando em compartilhar o poder, disse Bernal-Meza ao Correio.

O analista político Pablo Mera segue a mesma linha, e acrescenta que Cristina terá dois desafios principais dentro do peronismo. Por um lado está o sindicalismo puro e duro, na figura de Moyano, que já é presidente do PJ na Província de Buenos Aires. Menos de 48 horas da morte de Néstor, ele já reclamava uma reestruturação do partido. É um aliado que assusta a classe média, porque traz as piores recordações da patota sindical, de conotação negativa, diz Mera. Por outro lado, o analista indica que a presidenta também terá de enfrentar o peronismo dissidente, encarnado em alguns governadores de província. Para Mera, o vice-presidente Julio Cobos é apenas uma das ameaças à liderança de Cristina. Mas o vice-presidente é o perigo menos grave. Seu pior inimigo são os do próprio partido, que vão tentar derrubá-la, arrisca.

Bernal-Meza acredita que, paradoxalmente, será o governador da Província de Buenos Aires, Daniel Scioli a quem Néstor vinha maltratando politicamente nos últimos tempos o nome mais provável e leal para conseguir um consenso no justicialismo em torno de Cristina. Do meu ponto de vista, é o candidato que a sociedade argentina aceitaria e que garantiria a Cristina Kirchner uma retirada em paz, diz o professor da UBA.

O ex-presidente da República Eduardo Duhalde é outro nome que aparece na lista de figurões do peronismo. Mera pondera, porém, que Duhalde, apesar da capacidade de construir alianças, já não detém o poder de outrora. Hoje, Duhalde é apenas mais um na oposição, como Macri, Narvaéz e os radicais, diz. Já não tem o poder que teve como presidente. Duhalde não tem cargos políticos nem administra nenhuma província que lhe permita dispor de recursos, como infelizmente é comum na Argentina, completa Mera.

Corrida presidencial

Na sexta-feira, Scioli acenou com lealdade à presidenta, um gesto interpretado pelos jornais argentinos como indicação de que o governador aceitaria assumir o comando do PJ e candidatar-se à Presidência da República . Vou estar onde Cristina precisar de mim, este sempre foi o pedido que me fazia Néstor: que administrasse com ela, disse Scioli ao sair do velório do ex-presidente, na Casa Rosada. Por sua vez, o líder da CGT, Hugo Moyano, declarou que Cristina é a chefa da grande família peronista, que deverá voltar a se unir, apesar das formas distintas de ver as coisas.

Segundo sinalizou o chanceler Héctor Timerman ao canal de TV americano CNN, a presidenta não entregará a liderança no partido e a faixa presidencial facilmente aos colegas peronistas. Timerman garantiu que ela será a candidata do governo nas eleições de 2011. Nós dizíamos que podia ser pinguim ou pinguina, que podia ser ele ou ela. Agora, certamente será ela, disse Timerman, referindo-se ao apelido de Néstor, natural da Patagônia. Cristina vai ser a candidata dos argentinos e vai ganhar as eleições, não tenho nenhuma dúvida, opinou o chanceler.

Nas palavras do presidente do Uruguai, José Mujica, em entrevista à revista Búsqueda, é difícil prever o futuro do peronismo. É um partido que nunca se sabe qual rumo vai tomar, porque cabem nele (Carlos) Menem e cabem outros. Mas (o peronismo) tem uma incidência brutal na história argentina.

Quatro cavaleiros

Quem são os políticos que aspiram a liderar o peronismo

Daniel Scioli

Governador da província de Buenos Aires, nasceu em 1957, numa família de classe média. Sua carreira política começou aos 30 anos, quando consquistou uma cadeira de deputado, apadrinhado pelo então presidentem, Carlos Menem. Foi vice de Néstor Kirchner (2003-2007), que lhe garantiu a vitória para o governo da província de Buenos Aires, antes de deixarem a Casa Rosasa. Era amigo do casal K e promete apoiar Cristina até o fim do mandato. Tem grandes possibilidades de substituir o falecido ex-presidente, se conseguir unir as duas correntes que dividem o partido: os oficialistas (ou kirchneristas) e os federais dissidentes.

Hugo Moyano

O líder da poderosa Confederação Geral do Trabalho (CGT) nasceu em La Plata, capital da Província de Buenos Aires, em 1944. Com 18 anos, foi eleito líder sindical de uma empresa de transportes. Em 1987 tornou-se deputado pelo Partido Justicialista (PJ), cargo que exerceu até 1991. Em 2003, o então presidente Néstor Kirchner restituiu a personalidade jurídica à Confederação Argentina de Trabalhadores do Transporte, retirada pelo regime militar (1976-1983), e Moyano assumiu como secretário-geral. Dirigente da Confederação Geral do Trabalho (CGT) desde julho de 2004 e presidente do Partido Justicialista na província de Buenos Aires, Moyano tem aspirações políticas declaradas.

Eduardo Duhalde

Presidente da República entre 2002 e 2003, é outro nativo da Província de Buenos Aires, nascido em 1941. Foi deputado entre 1987 e 1989 e vice-presidente de Carlos Menem entre 1989 e 1991. Hoje, é a principal figura do peronismo dissidente. Depois de passar pela Casa Rosada, decidiu apoiar a candidatura de Néstor Kirchner, até então um político conhecido apenas na província de Santa Cruz. Néstor acabou arrebatando o comando do PJ. Duhalde tem forte influência na capital federal e na província, e não esconde o desejo de disputar a Presidência em 2011. Foi um dos articuladores da dissidência partidária, formalizada em junho para apresentar uma alternativa ao casal K.

Francisco de Narváez

Empresário e deputado federal desde 2005, nasceu em 1953 em Bogotá, na Colômbia, filho de uma tcheca e um colombiano. A família radicou-se em Buenos Aires quando ele tinha apenas 3 anos. A condição de naturalizado é apontada como um dos empecilhos no caminho à Presidência. Em 2001, o grande empresário da comunicação ingressou no Partido Justicialista, convidado pelo atual prefeito da capital, Mauricio Macri, amigo de longa data. Em 2003, Macri tornou-se oposição ao PJ e fundou o partido de centro-direita Proposta Republicana (PRO). A morte de Néstor Kirchner pode alimentar a aliança política entre Narváez (que continua no PJ) e Macri na disputa pela Presidência, em 2011.