Título: A lavagem de dinheiro e a questão do delito antecedente
Autor: Velludo , Alamiro ; Netto, Salvador
Fonte: Valor Econômico, 08/08/2012, Política, p. A7

Dentre os delitos debatidos no cerne da Ação Penal nº 470, certamente a lavagem de dinheiro apresenta-se como um dos mais complexos. Sua formulação típica exige da doutrina jurídico-penal constantes reflexões, assumindo um papel cada vez maior de protagonismo tanto na produção acadêmica nacional quanto estrangeira. Formulado originariamente como um mecanismo de repressão à gestão e financiamento do tráfico de drogas, o crime de "money laundering" foi gradativamente distanciando-se desse paradigma único, alargando sua ocorrência e permitindo a intervenção penal quando do emprego de recursos ilícitos derivados também de outras infrações penais.

No direito brasileiro, a lavagem de dinheiro aparece tipificada pela primeira vez pela Lei nº 9.613, de 1998, já estabelecendo um modelo de segunda geração. Quer isso dizer que nossa legislação, ao criminalizar a ocultação ou dissimulação acerca da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens direitos ou valores, não se circunscreveu apenas às infrações penais relacionadas às drogas. O legislador nacional abarcou também outros delitos antecedentes, como, por exemplo, crimes contra a administração pública, contra o sistema financeiro nacional, extorsão mediante sequestro e praticados por organizações criminosas. Recentemente, entraram em vigor, não sem críticas bastante pertinentes, novas alterações - promovidas pela Lei nº 12.683, de 2012 -, suprimindo a lista "fechada" de crimes antecedentes e, em consequência, permitindo a atribuição de lavagem nas hipóteses de ocultação ou dissimulação de recursos advindos de qualquer infração penal antecedente (terceira geração da lavagem de dinheiro).

Convém frisar, entretanto, que a nova lei, por ser mais grave, não se aplica aos casos pretéritos por força do princípio geral da irretroatividade da lei penal. Assim, o julgamento com o qual se depara o Supremo Tribunal Federal (STF) deve pautar-se pela legislação de então, qual seja, aquela que apenas sustenta a acusação de lavagem se existente ao menos um dos delitos antecedentes inseridos no rol até então estabelecido. Nesse cenário, algumas linhas de defesa mostram-se possíveis, valendo destacar aqui, dentre as já apresentadas em plenário, duas delas.

A primeira diz respeito ao componente subjetivo da lavagem de dinheiro, isto é, a acusação por esse delito apenas se sustenta se demonstrada a intencionalidade do agente em relação à sua prática. Mais ainda, exige a comprovação de que os acusados deste crime possuíam o conhecimento da origem ilícita dos recursos. Isso porque o ordenamento jurídico brasileiro não permite a prática de lavagem culposa (sem intenção), incorrendo no delito apenas aquele sujeito que detém o conhecimento da origem maculada dos valores e atua, em consequência, com a intencionalidade de ocultação ou dissimulação dessa mesma procedência.

Outra linha defensiva que merece menção é a postulação acerca da inexistência, no caso concreto, daqueles delitos antecedentes previstos na lei que vigorava à época dos fatos. Tratando-se de um delito dependente de outro crime pretérito, não será sustentável a acusação de lavagem se não ficarem comprovadas práticas delitivas anteriores, tais como corrupção, peculato etc. O crime de lavagem, portanto, apenas é juridicamente possível se os valores ocultados ou dissimulados derivarem de crimes outros, já que a intencionalidade legislativa é exatamente perseguir os recursos ilícitos ("follow the money") e, ao mesmo tempo, impedi-los de reingressar na economia regular.

Nesse sentido, a acessoriedade da lavagem de dinheiro em face do crime antecedente pode ser comparada, em termos bastante genéricos, com o conhecido delito de receptação, o qual apenas ocorre quando a coisa adquirida ou recebida é igualmente objeto de um crime, no mais das vezes patrimonial, anterior. Os argumentos da defesa, por essa razão, tendem a enfrentar as transações e negócios anteriores à realização dos supostos fatos específicos de lavagem, uma vez que, demonstrada a falta de ilicitude penal daquelas, inexistente será o componente essencial a justificar a condenação por lavagem de dinheiro. Aliás, essa é uma das complexidades desse tipo de acusação, eis que o julgador deve se ater não apenas aos atos rotulados como lavagem, mas também perquirir a respeito de uma origem espúria dos recursos a justificar a ilicitude do comportamento posterior.

Alamiro Velludo Salvador é professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)