Título: Candidatos americanos descartam verba pública
Autor: Silva, Carlos
Fonte: Valor Econômico, 26/02/2007, Internacional, p. A9

O sistema de financiamento público de campanha eleitoral estabelecido nos EUA a partir de 1974 como resposta moralizante da sociedade aos escândalos de Watergate corre o risco de desaparecer no pleito presidencial de 2008.

Nesta campanha, pela primeira vez em 34 anos, muito provavelmente os candidatos dos dois grandes partidos políticos - Democrata e Republicano - dispensarão a verba que a autoridade eleitoral da União - a Federal Election Commission (FEC) - colocaria à sua disposição em troca de uma série de limites de despesas.

A senadora Hillary Clinton, aspirante favorita à candidatura dos democratas, já anunciou que não usará o dinheiro público tanto nas eleições primárias quanto na campanha final, caso consiga a legenda do seu partido.

Seu rival, senador Barack Obama, fez o mesmo, com uma nuance: pediu autorização à FEC para voltar atrás caso ele (se for o candidato democrata) e o vencedor das primárias do Partido Republicano cheguem a um acordo de restringir a fase definitiva da campanha ao financiamento público. Neste caso, o excesso arrecadado seria devolvido aos doadores.

Obama está recebendo críticas severas do principal pré-candidato republicano, o também senador John McCain, que o acusou de oportunismo e de tentar montar uma rede de segurança caso não consiga atingir com contribuições particulares a mesma quantia que a FEC oferecerá a quem se atenha às suas regras (estimada em US$ 85 milhões).

McCain, que no passado se notabilizou pelo afinco com que defendia estrito financiamento público para as campanhas eleitorais, também abriu mão dele para as eleições primárias e tem dado sinais de que fará o mesmo no pleito definitivo.

Em 2004, o presidente George W. Bush, republicano, e os democratas John Kerry e Howard Dean abriram mão do financiamento público nas primárias, mas Bush e Kerry, os finalistas, o aceitaram na fase derradeira.

Agora, além de Clinton, Obama e McCain, também os republicanos Mitt Romney, ex-governador de Massachusetts, e Rudolph Giuliani, ex-prefeito e Nova York, preferiram concorrer nas primárias de 2008 sem as restrições do financiamento público e provavelmente qualquer um deles fará o mesmo se passar para a etapa seguinte.

Um dos motivos para o descrédito do sistema pós-Watergate é o fato de que os limites estabelecidos na década de 1970 nunca foram alterados e as despesas de campanha aumentaram dramaticamente desde aquela época.

Outra razão é o fato de que ao longo dos anos muitas brechas na legislação foram sendo exploradas pelos candidatos e as restrições impostas foram abandonadas por meios, se não explicitamente ilegais, ao menos suspeitos, o que tem progressivamente desmoralizado o sistema.

Finalmente, o tempo de duração da campanha presidencial americana tem aumentado a cada eleição. A de 2008, por exemplo, terá formalmente 23 meses, já que alguns dos principais pretendentes à Casa Branca - Clinton, Obama e McCain inclusive - anunciaram sua intenção de concorrer em janeiro de 2007.

Até o último quarto do Século XX, a campanha presidencial costumava durar no máximo um ano. O senador John Fitzgerald Kennedy, por exemplo, anunciou sua pretensão presidencial em janeiro de 1960 e elegeu-se em novembro.

Além disso, as eleições primárias - que antes de Watergate eram poucas e quase irrelevantes - disseminaram-se e muitos Estados resolveram antecipar a sua no calendário, de modo a não perder importância relativa (a Califórnia, por exemplo, maior colégio eleitoral do país, fazia a sua primária em junho, quando a definição do candidato, pelo menos desde 1976, já estava feita).

Antigamente, em fevereiro do ano eleitoral, apenas New Hampshire - tradicionalmente a primeira primária - realizava seu pleito. Agora, são inúmeros os Estados que decidem a preferência dos eleitores de cada partido nos três primeiros meses do ano da campanha.

Isso força os aspirantes a uma enorme e custosa operação de preparo em todos esses Estados. Para isso, necessitam levantar recursos com grande antecedência. Pela lei em vigor, o Estado provê o candidato com US$ 250 por doação de valor igual ou superior que ele obtenha de cidadãos ou empresas para as eleições primárias. Mas lhe impõe limites rígidos que variam de Estado para Estado.

Outra característica incomum na eleição presidencial de 2008 é o fato de nem o presidente nem o vice-presidente em exercício estarem concorrendo. Isso não acontece desde 1952, quando o presidente Harry Truman não se candidatou de novo e seu vice, Alben Barkley, então com 75 anos, foi considerado idoso demais para a tarefa.

Agora, Bush não pode se candidatar ao terceiro mandato e seu vice, Dick Cheney, 67, não tem a menor possibilidade eleitoral de pretender o cargo, já que é mais impopular que seu chefe, o qual tem as mais baixas marcas de aprovação pública desde Richard Nixon no auge do escândalo de Watergate.

Isso tornou a campanha nos dois partidos absolutamente aberta, o que levou a uma quantidade quase sem precedentes de aspirantes ao cargo. Claro que apenas alguns têm chance real (na prática, apenas Clinton, Obama, Giuliani e McCain). Mas, para evitar surpresas, todos preferem se precaver e, para isso, necessitam de verbas.

A falência do sistema de financiamento público de campanha já desperta intenso debate entre os líderes de opinião nos EUA. Os avanços obtidos após o trauma de Watergate estavam ameaçados fazia já algum tempo, mas agora fica impossível disfarçar a verdade. Algum tipo de urgente reforma na legislação é necessária.