Título: "Visão social elitista do PSDB afasta aliança com o PT"
Autor: Claudia Safatle e Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 01/12/2004, Especial, p. A12

Luiz Dulci, ministro chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, disse, em entrevista ao Valor, que 2005 será o ano do crescimento econômico com distribuição da renda, política que o governo pretende patrocinar através da recuperação do valor do salário mínimo e da correção da tabela do Imposto de Renda, entre outras iniciativas. Ele garantiu que não há, no governo, "rigorosamente ninguém que proponha abrir mão do controle fiscal e da vigilância sobre a inflação, como um preço a pagar para avançar nas mudanças sociais". E sustentou que os avanços sociais e a distribuição da renda são totalmente "compatíveis com a política econômica em vigor". Aliás, essas ações só serão possíveis no terceiro ano do governo Lula, segundo ele, depois do sucesso colhido com os dois primeiros anos de mandato, quando o governo recuperou a credibilidade e a estabilidade econômica, em 2003, e colocou o país na trilha do crescimento sustentado, em 2004. O ministro afirmou, ainda, que o governo não fará qualquer movimento artificial para desvalorizar a taxa de câmbio nem permitirá uma "flexibilização" do tripé macroeconômico - as políticas monetária, cambial e fiscal. À acusação do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de que o governo Lula "é incompetente", Dulci retrucou: "Parece até que o fracasso subiu à cabeça do ex-presidente". Há, entre o PSDB e o PT, algumas identidades "no plano político, da democracia representativa, do fortalecimento das instituições", avalia o ministro. Já na visão social, ele vê concepções totalmente distintas entre os dois partidos. " A visão social do PSDB é muito tradicional, regressiva, elitista", disse ele. A busca de uma aliança mais sólida com o PMDB e, agora, com o PP, faz parte do entendimento do governo de que consolidar e dar maior estabilidade à sua base parlamentar para governar "não é um direito, mas uma obrigação". Valor: O ex-presidente FHC acusou o governo Lula de incompetência. Ele tem razão? Luiz Dulci: Não consigo compreender por que o ex-presidente tem feito esses ataques gratuitos e injustos ao governo Lula. Incompetência foi o apagão, a destruição de milhões de empregos, a explosão da dívida pública e da vulnerabilidade externa. E isso aconteceu no governo dele, que, aliás, terminou melancolicamente. Para corrigir todo esse estrago foi necessário muito sacrifício e muita competência do presidente Lula, que fez o país crescer 5,3% até setembro. Esses ataques gratuitos não contribuem em nada para o progresso do país. Parece até que o fracasso subiu à cabeça do ex-presidente. A continuar assim, ele corre o risco de se transformar num dinossauro fracassomaníaco. Valor: Um dia antes da fala de FHC, o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, disse, em entrevista ao Valor, que o destino do PSDB e do PT é andarem juntos após as eleições de 2006. O sr. concorda com isso? Dulci: Objetivamente, a tendência tem sido de polarização. Isso é compreensível porque o PSDB foi líder da coalizão governamental durante os oito anos de governo FHC, e o PT é o líder da atual coalizão. Na prática, e as eleições municipais confirmaram isso, a tendência é que haja disputa entre esses dois partidos do ponto de vista político-eleitoral. Isso faz parte da vida democrática. E essa disputa, se feita com senso de responsabilidade e levando em conta os interesses do país, é benéfica. No que diz respeito a algumas teses, a própria trajetória comum no período de luta contra a ditadura, há maior identidade no plano político, da democracia representativa, do fortalecimento das instituições, mas a visão social é muito distinta. Valor: Por quê? Dulci: O PSDB tem uma visão muito conservadora da vida social brasileira e, na prática, freqüentemente se opõe a reformas sociais imprescindíveis para que o país avance. Devemos trabalhar juntos nas questões em que houver suficiente identidade, mas a visão social do PSDB é muito tradicional, regressiva, elitista. Valor: Por exemplo? Dulci: No que diz respeito à distribuição de renda. Temos uma visão de que é preciso fazer crescer a economia com responsabilidade, mas assegurando a distribuição de renda. Na prática, o PSDB tem se oposto a isso. Valor: De que forma? Dulci: Por exemplo, as declarações de Fernando Henrique são contrárias ao avanço das políticas sociais. É uma visão elitista, que separa o econômico do social. Se a valorização da democracia política nos une, o elitismo do PSDB, no que diz respeito aos direitos sociais, nos separa fortemente.

Incompetência foi o apagão, a destruição de milhões de empregos, a explosão da vulnerabilidade externa"

Valor: E a política econômica? Dulci: Uma política econômica deve ser avaliada por seus objetivos e resultados. A política econômica que prevaleceu, especialmente no segundo mandato de FHC, conduziu o país à recessão, desemprego, vulnerabilidade externa e apagão. Não só o energético, mas uma espécie de apagão econômico-social. A nossa política, adotando os instrumentos disponíveis - e não se pode fazer mágica na economia - conduziu o país à retomada do crescimento, geração de emprego, redução da vulnerabilidade externa. Há uma diferença substantiva também na política econômica. Valor: Usando dos mesmos instrumentos, o PT foi mais ousado e pode dar um salto qualitativo? Dulci: Fernando Henrique teve pelo menos três momentos, nos dois governos, em que poderia ter levado o país ao crescimento. As circunstâncias eram favoráveis. Ele não quis ou não soube fazer isso, porque tinha visão muito conservadora entre estabilidade e crescimento. Valor: O sr. está falando de 1996, 2000? Dulci: Não queria entrar nesses detalhes. Ao contrário, o presidente Lula tem buscado uma nova equação, de crescimento com estabilidade. Isso permitiu ao país crescer este ano bem mais do que nossas previsões, e já vai se tornando evidente que o crescimento em 2005 está garantido e em patamares semelhantes. O objetivo da nossa política econômica é muito diferente do objetivo que prevaleceu, sobretudo, no segundo mandato de FHC. Nosso objetivo sempre foi fazer o país voltar a crescer com estabilidade e apostamos nesse binômio - estabilidade e crescimento. Ao governo de FHC faltou o que o presidente Lula tem chamado de ousadia com responsabilidade. Lula superou essa falsa dicotomia - de um lado, estabilidade sem crescimento; de outro, inclusive em alguns setores da esquerda, crescimento sem estabilidade, ao preço da inflação alta. Estamos buscando uma nova equação, que está dando resultados. O Brasil está entrando num novo ciclo histórico de crescimento sustentado. Valor: Por que a dificuldade de setores do PT, dentro do governo, em reconhecer que esse é o caminho? Dulci: Na reunião do Diretório do PT, houve apoio fortemente majoritário, e na reunião dos ministros do PT com o presidente Lula, houve apoio total. O que se debate, no governo e no PT, é que o êxito na política econômica autoriza consolidar as políticas sociais que executamos em 2004 e avançar mais no social, atendendo demandas importantes, que não houve condições de atender em 2003. Por exemplo, incrementar mais a geração de empregos; adotar uma política de valorização do salário mínimo; tornar mais justa a tabela do IR dos assalariados; expandir mais o crédito popular, não só para consumo mas para o setor produtivo. O debate que se faz, em sintonia com Lula e com o ministro Palocci, é no que diz respeito ao avanço social que podemos ter, mantidas as características básicas da política monetária, fiscal e cambial. E, mantendo os investimentos nas políticas de solidariedade social, dar passos importantes na distribuição de renda. Não há ninguém, rigorosamente ninguém, que proponha abrir mão do controle fiscal, da vigilância sobre a inflação, como um preço a pagar para avançar nas mudanças sociais. Isso é compatível com a política econômica. Valor: O sr. diria que 2005 será uma nova fase de governo? Dulci: Pode ser visto como um terceiro momento do governo, que só foi possível pelos dois anteriores. Não se trata de trocar de política, mas de extrair as suas conseqüências positivas. Primeiro foi 2003, ano de superar a crise, recuperar a estabilidade e criar as condições para a retomada do crescimento; 2004 foi o ano de voltar a crescer e o país já pegou o ritmo do crescimento. E 2005 será o ano de crescimento com forte avanço social. Valor: Raul Pont e Marta Suplicy atribuíram suas derrotas à política econômica de Lula. O ministro da Educação, Tarso Genro, falou, na reunião do Diretório Nacional, que o governo teria que fazer uma "transição forçada" do modelo econômico de FHC para o modelo do PT... Dulci: Desde o início a política econômica é outra. Insisto nisso, qualquer política tem que ser avaliada pelos seus objetivos e resultados. E os resultados são muito positivos. O país voltou a crescer de modo sustentado. Tomamos uma série de medidas institucionais para favorecer esse crescimento; a política externa do governo Lula, além de afirmar valores, tem contribuído para expandir mercados e abrir mercados novos. Não se trata de trocar de política, nem de fazer movimentos forçados, mas de desdobrar uma política exitosa numa política de crescimento sustentado com mais investimentos sociais e distribuição da renda. Por exemplo, em 2005 o governo pode avançar na valorização do mínimo para os próximos anos. Sempre fomos favoráveis, mas se fizéssemos em 2003 ou 2004, seria voluntarismo. Agora, no patamar de estabilidade e crescimento que a economia atingiu, podemos dar esse passo no mínimo. Valor: Essa política virá junto com uma desvinculação dos benefícios da Previdência Social do reajuste do salário mínimo? Dulci: A orientação que o presidente Lula deu é para se buscar o melhor reajuste possível para o mínimo, combinado com uma política permanente de valorização - conforme reivindicado pela CUT e pelas centrais sindicais. O reajuste do mínimo beneficiará também os aposentados que ganham um salário. Não há qualquer proposta em estudo no governo para desvincular um do outro.

Ao governo de FHC faltou o que o presidente Lula tem chamado de ousadia com responsabilidade"

Valor: E que leitura o sr. faz das explicações de Raul Pont e Marta Suplicy para suas derrotas? Dulci: Eu fui a 11 Estados e visitei cerca de 30 cidades em Minas, e o que vi foi justamente o contrário. Todos os candidatos do PT e dos partidos aliados reivindicando com ênfase as realizações do governo federal, como também boa parte dos adversários tentando demonstrar que não são contrários à política do governo federal, que teriam acesso ao governo, que manteriam em seus municípios políticas do governo, como o Pronaf (Programa de Agricultura Familiar) e Bolsa Família. Se Lula contou, nesse processo, foi positivamente tanto para os candidatos do PT quanto da base aliada. Valor: Quando o sr. fala em avançar no social, está falando em flexibilizar a política econômica? Dulci: Não. Não usei "flexibilizar" de forma consciente, porque pode dar a impressão de que é afrouxar, abrir mão do rigor que adotamos nesses dois anos, e sou contrário a isso. Acho que os ministros petistas também são contrários. Trabalhamos para criar as condições para que seja possível reajustar o mínimo. Não são condições ideais, são reais. Não vamos dar um reajuste miraculoso nem para o mínimo nem para o IR, mas já existem condições para começar a atender, gradualmente, essas demandas, com responsabilidade. Não se trata de populismo. Tenho conversado com empresários, com os agentes econômicos, e acho que vão entender bem, que já há condições de tomar medidas que dizem respeito menos à assistência social e mais à distribuição da renda. Portanto, não creio que a palavra "flexibilizar" seja adequada. Valor: O governo está preocupado com a valorização do real? Tem discutido isso? Dulci: Há uma convicção forte de que o câmbio é flutuante e deve ser mantido flutuante. Portanto, o governo não vai adotar medidas artificiais com relação ao câmbio e vai, via Tesouro Nacional, comprar dólares de acordo com o calendário dos pagamentos que tem a fazer. Nenhuma iniciativa artificial, exclusivamente para mudar a relação dólar/real será tomada. O próprio sistema de taxas flutuantes vai gerando equilíbrio. As exportações são importantíssimas para o país e agora nesse mês aumentaram bastante. O que não é ruim, porque são importações de insumos e componentes para produção e exportação. Queremos manter um importante saldo comercial e incrementar cada vez mais as exportações. Em 2005, bater o recorde deste ano. Em 2006 bater o recorde de 2005. Há um horizonte comercial e político de expansão das exportações. Não foi à toa que em novembro recebemos tantos chefes de Estado estrangeiros e com uma série de discussões. Valor: Mas não conseguimos sequer vender carne para a China e para a Rússia... Dulci: Mas conseguimos vender outros produtos e atrair investimentos desses países. Vamos fechar 2004 com o governo e a sociedade debatendo quais os investimentos que serão feitos em infra-estrutura, na geração de empregos, na área social. Ao contrário dos outros anos, quando o país estava de pires na mão no mundo pedindo socorro para cobrir o rombo das contas externas. É uma evidência tremenda de que é outra política econômica e são outros os resultados práticos. Valor: Quando isso vai casar com um ambiente político menos tenso? Dulci: O Congresso tem sua composição. Pelo nosso sistema político, é possível que alguém ganhe uma eleição majoritária de forma espetacular e não tenha maioria da Câmara ou no Senado. Mesmo se somarmos os partidos que apoiaram Lula no primeiro e segundo turnos, não temos maioria. Esta tem que ser permanentemente atualizada. Isso significa que há momentos de maior estabilidade e momentos que, por uma razão ou outra, o parlamento viva momentos de tensões. Como Lula está construindo pessoalmente esse processo de consolidação da base, e de integração mais plena dos partidos aliados, acho que até o final do ano acho que teremos esse processo bem concluído. E acho que no ano que vem a base no parlamento será mais sólida do que tivemos em 2004. Valor: O relacionamento que o governo procura com o PMDB e com o PP é a continuação do namoro ou é um casamento? Dulci: O governo está empenhado em consolidar e dar maior estabilidade à sua base parlamentar para governar. Isso não é um direito, mas uma obrigação. Numa democracia representativa, ou você tem uma maioria sua, que resulta automaticamente das eleições, ou você está obrigado a construí-la. Faz parte do mandato que você recebeu das urnas. A estabilidade política é importante não só para as relações políticas, mas também para que esse ciclo sustentável da economia possa produzir todos os resultados, especialmente, os sociais. A instabilidade prejudicaria esse processo. Então, não é uma necessidade do governo, mas do país. Temos que fazer isso com os partidos aliados e com os que queiram fazer uma base junto com o governo. Há siglas que não querem, como o PSDB e o PFL. Isso é legítimo. Valor: Mas o governo não os procurou... Dulci: Eles estão num esforço para constituir a oposição. Fomos oposição durante muitos anos e, nessa condição, demos uma enorme contribuição ao país. Para 2006, queremos uma aliança forte, sólida. Nas eleições deste ano, fizemos cerca de 900 chapas conjuntas com o PSDB. Em 2/3 delas, tínhamos o PT apoiando candidatos do PMDB. Em Minas Gerais, fizemos cerca de 200 alianças com o PMDB. São pessoas decentes e em geral têm uma prática administrativa moderna. O PMDB é um partido muito heterogêneo porque nasceu como frente. Tem tradição e tem lideranças e compromisso democrático. Historicamente, teve sensibilidade para os direitos sociais. Evidentemente, não é um partido de esquerda. A gente não faz alianças só com os iguais. O fundamental é que essas alianças tenham uma dimensão programática forte. Vamos nos empenhar nas alianças, fazendo as concessões que sejam cabíveis politicamente.