Título: A esperteza que envolve um vinho "sem compromisso"
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 27/02/2007, Eu & Investimentos, p. D6

O que esperar de um vinho rosé? Imagino que não deve ser a sensação de ver estrelinhas e de se emocionar com ele em si, o que, convenhamos, não são muitos os brancos e tintos, entre outros gêneros, como champagne e certos licorosos, que conseguem. No fundo, os rosés podem ser indutores de bons momentos em boa companhia, o que já tem lá seu mérito. Dividir uma garrafa de forma descontraída é uma conquista dos novos tempos em que cada vez mais o vinho perde seu caráter elitista.

A despeito de alguns tradicionalistas e muitos desinformados (inclusive garçons) demonstrarem desprezo por quem pede rosés, a verdade é que eles, depois de virarem moda na Europa, conquistaram espaço importante no atual verão brasileiro, a ponto de surpreender os importadores que ficaram sem estoque.

A questão que se coloca é que o crescimento dos rosés, impulsionado por artigos e comentários na imprensa em geral, fez com que o consumidor embarcasse nessa onda sem espírito crítico, como se todos os vinhos do gênero fossem iguais. Mais leve ou pesado, seco ou adocicado, a rigor poucos se dão conta. E é essa onda que um sem número de vinícolas do mundo todo resolveu também aproveitar, repetindo erros do passado.

O rosé surgiu com toda força após a Segunda Guerra no sul da França, mais especificamente na Provença, como tentativa de empurrar a produção de vinhos locais, mal servida de bons e refrescantes brancos para saciar a sede de seus habitantes durante o verão e da leva de turistas que a invadia na estação. A onda logo se alastrou para outras regiões francesas e outros países, sem a preocupação e nem o suporte técnico necessários. O resultado foi uma enorme quantidade de rosés banais, para consumidores pouco exigentes.

Embora com outra denominação, os vinhos rosés já tiveram reconhecimento em tempos passados. Na Antiguidade falava-se de vinho branco, tinto, e ... preto(!). Este último, considerado inferior, era reservado para os criados. O tinto era, na realidade, rosado na cor até por volta do século XVII, daí, inclusive, o nome " claret " - derivação de vin clair, ou clairet, que significa claro em francês -, como ficaram conhecidos os Bordeaux importados pelos ingleses.

O processo de elaboração daqueles tintos é, basicamente, o mesmo que se utiliza nos rosés atuais, ou seja, parte-se de uvas tintas, mas encurta-se o período em que as cascas - onde está a matéria corante (e os taninos) - participam do processo. Enfim, o rosé começa como se o objetivo fosse elaborar um tinto, porém a fermentação é conduzida sem as cascas, como num vinho branco.

A bem da verdade, há duas maneiras de se obter um vinho rosado. Clairet e rosé, no fundo, fazem parte do mesmo grupo, onde as uvas (tintas) são prensadas e o suco resultante segue para fermentação. A diferença entre os dois é que no rosé clássico a prensagem é executada após seis ou oito horas, o suficiente para dar leve coloração ao suco, assim como pouco ou quase nada de taninos. No clairet, o período de maceração é mais longo, entre 24 e 48 horas, resultando em um rosado de cor mais intensa e algo mais tânico, tanto que alguns produtores optam por estagiá-lo em madeira, procedimento não recomendável para os leves e frescos rosés.

O segundo método é mais próximo da vinificação de tintos e pode, inclusive, ser considerado como um sub-produto dele. Nesse processo, chamado de sangria, " saignée " em francês, as uvas não passam pela prensa, sendo colocadas diretamente na cuba de fermentação. Passado um certo tempo - mais ou menos horas, e iniciada ou não a fermentação, tudo a critério e vontade do produtor - parte do líquido é retirada e enviada para outra cuba onde segue a fermentação como um branco.

O contato maior com as películas e até mesmo sua eventual participação no início do processo de fermentação fazem do rosé de " saignée " um vinho mais encorpado e vinoso, mais próximo de um tinto leve. Em contrapartida, o que resta na cuba de tintos fica mais concentrada e permite vinhos com maior extração e intensidade.

Em princípio, nada impede que em ambos os processos para compor rosados se obtenha bons vinhos do gênero, ainda que com estilos diferentes: delicados, frescos e com matizes puxando para um salmão, como, acredito e prefiro, deva ser um rosé; ou aqueles de cor avermelhada, quase uma groselha, intensos e com algum tanino.

Preferências à parte, o perigo de entrar outra vez numa fase decadente diz respeito aos excessos. A leva de rosés medíocres que, aproveitando-se da abertura entrou no mercado, tenta impressionar à primeira vista. É pela cor, pelo corpo, pelo álcool elevado, e, pior, por um indisfarçável e proposital toque adocicado. É a mesma coisa que uma mulher de micro-saia e super maquiada. Se porventura não der para escapar do contato, ninguém, em sã consciência, agüenta 2 minutos. No caso do vinho, 2 goles.

Volta a pergunta inicial: o que esperar de um vinho rosé? Fundamentalmente que ocupe espaço entre (bons) brancos e tintos, aliás, que fique mais próximo de um branco do que de um tinto, já que o intento é que seja boa companhia para dias quentes, que pode ser uma conversa descompromissada, ou mesmo se compatibilizando com comidas da estação. Para tanto, ele deve ser alegre, nem diluído nem encorpado, sem destoar na graduação alcoólica e que tenha frescor. É boa acidez que dá equilíbrio a um vinho.

Na prática, isso significa que o tratamento não pode ser o mesmo que um vinho tinto, onde se admite (?) algum deslize no álcool e (menos) na acidez por conta de outros fatores que permitem compensar essas imperfeições, no caso corpo e tanino. Assim, a elaboração de um bom rosé começa no vinhedo, em escolher a hora certa de colher; não há como compensar na vinificação uvas sobre-maduras. Pensando bem, um bom rosé começa com bons propósitos de quem é responsável por ele.

Há, por outro lado, uma questão de terroir apropriado. Nesse aspecto, até agora, o Velho Mundo está quilômetros à frente. Dos 30 rosés degustados recentemente, nenhum do Novo Mundo se destacou, incluindo aí, só para citar alguns, o Alamos, do Catena (Mistral), La Flor de Pulenta, Santa Rita 120 (ambos da Grand Cru), e Chacana (World Wine-La Pastina). Nesse grupo, vale uma menção até agradavelmente surpreendente apesar do preço (ao redor de R$ 55): o Villa Francioni 2006, uma vinícola situada em São Joaquim cheia de boas intenções (e pretensões). Em compensação, bem sofrível, o Valduga Duetto, produtor do Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul.

Nos vinhos europeus nem tudo encantou, e não dá para generalizar país, nem região, o que confirma a tese da importância que tem o homem no resultado final. Em Navarra, região colada em Rioja, palmas para o Gran Feudo 2005, de Juliàn Chivite, sempre uma escolha segura - pena estar esgotado -, o que não aconteceu com o Artazuri Garnacha 2005, projeto do premiado riojano Artadi e o Viñas del Vero 2005, de Somontano (os três da Mistral). Outro espanhol pouco atraente foi o Prado Rey, de Ribera del Duero (Decanter)

Entre os melhores, além dos citados em destaque ao lado, vale destacar o excelente Côtes de Provence Château Vannières 2004, o melhor da degustação (US$35,50 na Mistral), e o Lirac St-Roch 2005, (também esgotado, custava R$58,10 na Decanter). Ambos, mais o Perle de Rosé, destacado à parte, comprovam a vocação do sul da França no gênero. Na dúvida, fique com ela.