Título: As multas do Cade e a revisão pelo Judiciário
Autor: Figueiredo Junior, Gerardo
Fonte: Valor Econômico, 05/10/2006, Legislação & Tributos, p. E2

Muita coisa foi escrita e dita recentemente sobre a suposta ineficácia das multas aplicadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) como resultado de investigações sobre condutas contrárias à ordem econômica. Declarações de autoridades do conselho e da Secretaria de Direito Econômico (SDE) aparecem a todo instante reafirmando a importância da atividade desses órgãos, o que não se discute, mas também sobre o que eles consideram a questionável participação do Poder Judiciário na revisão das decisões adotadas nesses processos. Com isso, aproximadamente R$ 90 milhões em multas aplicadas não teriam sido pagos até a metade deste ano, pois os condenados no âmbito administrativo buscaram medidas judiciais para questionar as condenações impostas pelo Cade.

Pois bem, em primeiro lugar é preciso estabelecer alguns parâmetros para que se possa entender adequadamente a situação vivida pelas autoridades antitruste em contrapartida aos interesses dos agentes econômicos investigados: as decisões do Cade não estão isentas de erros e imprecisões que podem acarretar-lhes nulidades flagrantes.

Em sua defesa, representantes do Cade dizem que o Judiciário não estaria preparado para decidir sobre questões afeitas à concorrência, sobretudo no que concerne a conceitos econômicos sofisticados. No que concerne à condução do processo, afirma-se também que o controle da legalidade dos atos seria feito pela própria procuradoria do Cade, responsável por emitir um parecer antes da decisão final de cada processo administrativo.

É certo, no entanto, que em muitos casos há, sim, ilegalidades representadas pela inobservância dos direitos e garantias individuais dos investigados, o que até certo ponto se compreende em razão da ansiedade das autoridades na busca do melhor término possível para a investigação em curso. Mas as boas intenções, infelizmente, não servem como desculpa para a ilegalidade de um ato administrativo e é neste ponto que o Judiciário pode e deve intervir, pois a Constituição da República lhe garante essa prerrogativa.

-------------------------------------------------------------------------------- A negociação do valor de multas aplicadas com o simples intuito de pôr fim ao processo é bastante questionável --------------------------------------------------------------------------------

Assim, todos os atos das autoridades envolvidas no chamado Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) estão sujeitos ao crivo do Judiciário. A simples alegação de desconhecimento da matéria pelos juízes não pode servir como argumento para ultrapassar uma garantia constitucional, pois mesmo em relação às decisões de mérito do Cade os nossos magistrados podem lançar mão de uma assistência especializada para elucidar as questões, o que ocorre em um sem número de casos concretos diariamente submetidos aos nossos tribunais. Ressalte-se que as autoridades administrativas e os particulares também poderão, por sua vez, apresentar seus próprios elementos de convencimento na ação judicial.

Por outro lado, a hipótese de negociação do valor de multas aplicadas com o simples intuito de pôr fim ao processo é bastante questionável, tendo em vista que as multas, em tese, não deveriam ter a finalidade de sustento do órgão que as aplica, pois isso tenderia a desvirtuar a verdadeira natureza dessas penalidades como forma de coerção, educação e punição.

Os últimos projetos de lei apresentados por representantes do SBDC visando à criação de uma agência de defesa da concorrência, em substituição ao atual modelo, traziam como uma das fontes de receita da agência o produto das multas aplicadas. Sob o ponto de vista da moralidade administrativa, essa hipótese pode gerar grandes distorções. Cite-se como exemplo a recente campanha feita por um órgão de defesa dos consumidores que propôs o pagamento das multas aplicadas com significativo desconto, buscando incentivar a desistência de medidas judiciais propostas para reverter tais decisões.

Ora, é certo que essa iniciativa pode ser atraente a algumas empresas dispostas a se livrarem de um processo que poderia levar anos para se resolver. Por outro lado, essa não é uma solução que se aplica indiscriminadamente a todos os casos. É preciso que cada empresa avalie a conveniência de pôr fim a uma pendência que, mesmo superada pela aceitação de um acordo, poderá implicar em uma mácula à própria imagem, uma vez que a condenação pelo órgão administrativo não mais será objeto de análise e possível revisão pelo Judiciário.

A desistência da ação judicial pode parecer cômoda e até mais econômica em um primeiro momento, mas perante a opinião pública pode implicar em uma condenação ainda mais rigorosa. Também os órgãos do SBDC podem sair perdendo, pois a noção de segurança que deve ser transmitida à coletividade poderá ficar abalada diante da sensação de que não houve a devida resposta por parte do Estado, mesmo diante da condenação impingida ao infrator.

Gerardo Figueiredo Junior é advogado e sócio do escritório Goldstein Troper, Figueiredo e Perossi

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações