Título: Geografia da fome, uma lei
Autor: Ananias, Patrus
Fonte: Valor Econômico, 06/10/2006, Opinião, p. A16

O dia 16 de setembro de 2006 entra para a história das conquistas sociais no Brasil, carregado de simbologias. O ato de promulgação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) já traz em si uma teia de significados ao elevar o acesso à alimentação à condição de política de Estado permanente. Algumas coincidências que cercam o evento aumentam ainda mais essa importância: a lei fora aprovada no Senado no dia 5 de setembro, justamente no dia do aniversário de Josué de Castro, médico e geógrafo, pioneiro na defesa das políticas de segurança alimentar no Brasil que, estivesse vivo, completaria 98 anos. E sua principal obra, "A Geografia da Fome", completa 60 anos neste ano, com um rigor científico e político que a mantém como referência de todos que militam na área.

"Denunciei a fome como flagelo fabricado pelos homens, contra outros homens", afirmava Josué de Castro, apontando a dimensão social do problema. As soluções para eliminar essa tragédia devem partir, portanto, de uma abordagem mais ampla, seguindo os ensinamentos do mestre Josué, que tratava a fome como "a expressão biológica dos males sociológicos".

"A Geografia da Fome" identificou, com precisão cirúrgica, o problema da fome no Brasil, conferindo ao conceito a complexidade e diversidade que lhe é inerente e também proporcional aos problemas sociais que estão na sua gênese. Vasculhou todas as suas especificidades de modo a reunir elementos para apontar as multiplicidades de ações de políticas necessárias para o setor. São "as fomes individuais e coletivas. As fomes totais e parciais. As fomes específicas e as fomes ocultas". Sua preocupação voltou-se principalmente para as fomes coletivas, em especial atenção para as parciais ou ocultas que, segundo ele, por mais freqüentes e graves, são as que mais atingem as populações e com elevado poder de dizimação. É a fome provocada pela falta permanente de determinados componentes nutritivos; é quando a pessoa come, todos os dias ou quase todos os dias, mas não se alimenta.

O acesso à alimentação, em quantidade, regularidade, quantidade suficientes e ainda suficientemente diversificados para cobrir as necessidades alimentares da população. Esse é o primeiro direito constitutivo na formação da cidadania, da dignidade humana. O direito elementar e humano à alimentação é uma condição básica para que as pessoas tenham saúde, que tenham condições de almejar outros direitos, outros desejos de uma vida melhor. Cuidar para que isso aconteça não é assistencialismo, é promover reconhecimento de direitos elementares e é um movimento que tem raízes históricas na sociedade brasileira, tendo Josué de Castro como principal referência. Outras pessoas e entidades se mobilizaram em torno dessa bandeira, como o Herbert de Souza - o Betinho -, Dom Hélder Câmara, além de tantos outros anônimos que dedicaram e dedicam suas vidas à luta por um Brasil sem fome que se traduz hoje no Fome Zero.

-------------------------------------------------------------------------------- Na lacuna deixada pela ausência histórica de políticas na área social, os movimentos de combate à fome se sobressaíram --------------------------------------------------------------------------------

É fundamental estabelecer as diferenças de abordagem para que possamos perceber como o reconhecimento da assistência no campo dos direitos sociais é o caminho para combater o assistencialismo. Por muito tempo, prevaleceu uma visão equivocada sobre a questão da alimentação, que era vinculada à caridade. Na lacuna deixada pela ausência histórica de políticas na área, sobressaíam os movimentos de combate à fome, de coleta de alimentos para distribuição em datas e eventos específicos. Não há como negar que foram - e ainda são - importantes manifestações de filantropia e de boa vontade. No entanto, pelas limitações inerentes à natureza dessas iniciativas - por vezes segmentadas, pontuais e exclusivamente emergenciais - não se constituem, efetivamente, em alternativa para solucionar um problema que é estrutural e tem implicações sociais.

O direito à alimentação, exatamente por sua premência, não pode estar sujeito à boa vontade das pessoas e instituições, por melhor que sejam as intenções e por mais importância que tenha essas iniciativas no sentido de mobilizar as consciências em torno das soluções do problema da falta do que comer. É necessário, considerando os ensinamentos de Josué de Castro e outros que estudaram o fenômeno, que o direito à alimentação faça parte de políticas públicas permanentes, articulando com outras políticas que ataquem, na origem, os problemas sociais que produzem a situação de fome. As políticas precisam, inclusive, considerar a história dos movimentos sociais, desenvolvendo também a capacidade de articular o esforço coletivo de homens e mulheres de boa vontade que estão em contato, na ponta, com o problema da fome e se mobilizam em torno dele. Mas, nesse caso, os movimentos passam a existir num outro patamar, contribuindo, com sua capilaridade e potencial mobilizador, como parceiro de uma política elaborada estrategicamente e que pense o problema da fome de maneira global. Essas características se refletem na Losan, resultado de um projeto elaborado pelo governo com participação efetiva do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em sintonia com os conselhos estaduais e municipais e prontamente acolhido pelo Congresso Nacional, que o aprovou com a agilidade necessária.

Penso que um governo entra para a história quando ele expressa e viabiliza sentimentos e desejos presentes na consciência da população. Erradicar a fome e a desnutrição no Brasil, na perspectiva de direitos legitimados e normatizados em lei e articulando com outros direitos, é um sentimento forte na sociedade brasileira. Juntos estamos alcançando essa conquista histórica: erradicando a forme e a desnutrição no Brasil.

Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.