Título: O Brasil morde e assopra
Autor: Verdini, Liana
Fonte: Correio Braziliense, 12/11/2010, Economia, p. 12

Em entrevista à tarde, Lula defende a substituição da moeda dos EUA como o padrão para o comércio exterior e as reservas internacionais. À noite, entretanto, apela para o espírito de cooperação dos líderes

A reunião de cúpula do G-20, grupo que reúne as 19 maiores economias e a União Europeia, começou mergulhada em um clima tenso, sem um consenso prévio sobre o que fazer para o mundo voltar a crescer. Em meio ao bombardeio de críticas às políticas cambiais dos Estados Unidos e da China, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva primeiro atacou para depois contemporizar. Em entrevista coletiva no fim da tarde em Seul, capital sul-coreana, Lula propôs que o dólar deixe de ser a moeda de referência para as reservas e o comércio internacional e exigiu mais consumo por parte dos países ricos. À noite, no jantar de trabalho dos chefes de Estado e de governo, no Museu Nacional da Coreia, disse que todos precisavam recuperar o espírito de cooperação e solidariedade existente no primeiro encontro do G-20, há dois anos.

Era uma tentativa de diminuir as tensões, infladas ao longo do dia com tantos interesses contrariados no comércio internacional. Por trás de tudo está a chamada guerra cambial, que torna os produtos em dólar e em iuan mais competitivos do que os dos demais países, desequilibrando as balanças comerciais. Nesse primeiro dia de cúpula com agenda oficial somente à noite, os líderes aproveitaram para manter encontros bilaterais. O mais aguardado foi a reunião entre o presidente norte-americano, Barack Obama, e o chinês, Hu Jintao. Os EUA tentam barrar a enxurrada de mercadorias da China em seu mercado. Para Obama, está havendo ¿progresso¿ nas discussões econômicas.

Hu Jintao fez coro com o presidente norte-americano sobre a disposição para a cooperação. Logo, porém, a realidade se mostrou mais forte. Segundo um porta-voz chinês, o presidente de seu país disse a Obama que a reforma do iuan acontecerá ¿de forma inevitável¿, mas que será preciso um ¿entorno externo muito favorável¿ e que só poderá ser aplicada em um processo gradual.

Depois, foi a vez de um encontro com a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, que expressou sua preocupação com a decisão recente do Federal Reserve (Fed, o Banco Central dos EUA) de injetar US$ 600 bilhões na economia. Obama, por sua vez, disse a Merkel que quer ver mais consumo doméstico na Alemanha, o que favoreceria as vendas norte-americanas. Na reunião, a premiê destacou que não considera útil estabelecer metas para as contas externas dos países. No fim, os dois concordaram que os desequilíbrios têm de ser discutidos para o bem de todos, mas com base em um amplo espectro de indicadores.

Cobrança Enquanto Obama se fechava em encontros bilaterais, Lula chegava à Coreia do Sul no início da tarde e afiava seu discurso para cobrar providências aos países ricos. Logo após se reunir com o presidente sul-coreano, Lee Myung-bak, o brasileiro falou aos repórteres. Para ele, os países ricos devem estimular o consumo interno, como fizeram os emergentes, pois, incentivando apenas as vendas externas como forma de sair da crise, a economia global quebraria. ¿Se os países mais ricos não consumirem a contento e se quiserem apostar apenas nas exportações, o mundo vai à falência.¿

O presidente do Brasil afirmou que ¿dialogar é melhor do que brigar¿. E acrescentou: ¿Num mundo globalizado, e cada vez mais interdependente, não podemos mais deixar que um país tome uma decisão unilateral sem pensar nas consequências para os demais países¿. ¿Todo mundo quer ganhar mais com mais exportação. E não é possível apostar apenas nisso¿, completou. ¿Os países emergentes não suportam ser responsáveis pelo consumo e pela produção ao mesmo tempo.¿

Consultado sobre a alternativa de uma cesta de moedas para substituir o dólar como padrão internacional, Lula disse que o Brasil trabalha nessa possibilidade com China, Rússia e Índia. ¿Desde o ano passado, estamos discutindo no Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) para fazer comércio em nossas moedas. Isso é fácil de falar, mas estamos tão acostumados a trabalhar com o dólar que há medo de fazer algo novo¿, afirmou. ¿Mas o dólar não pode continuar sendo uma moeda de referência se é feito por apenas um país. Tem que haver outras possibilidades de referência.¿

Para o economista Rogério Sobreira, da Fundação Getulio Vargas, as propostas brasileiras são de difícil adoção. ¿O consumo nos países ricos não aumenta porque as pessoas temem fazer novas dívidas e os governos estão sem capacidade de gastar. Só resta induzir o consumo baixando os juros¿, explicou. O uso de outras divisas como padrão é ainda mais difícil, avaliou. ¿A moeda de referência dá muito poder ao país emissor. E os Estados Unidos devem resistir a essa perda de espaço.¿

Mantega no ministério » O presidente Lula passou tarefas para o ministro da Fazenda, Guido Mantega, levar ao encontro dos ministros de Finanças do G-20 no ano que vem, já na gestão de Dilma Roussef. Embora ela não tenha confirmado Mantega no cargo, Lula não hesitou em orientar o ministro, na entrevista coletiva: ¿Guido, na próxima reunião de ministros do G-20, é importante que se faça um levantamento para saber o que cada país fez desde a primeira reunião até agora. Acho, viu Guido, que essa é uma tarefa importante. Vai facilitar as tomadas de decisões futuras¿.

Protesto nas ruas Cerca de 3 mil ativistas protestaram ontem nas ruas de Seul, capital da Coreia do Sul, contra a cúpula de líderes do G-20 sob a vigilância de um forte esquema de segurança, que incluiu uma cerca de dois metros de altura em torno do centro de reuniões e mais de 50 mil policiais. Houve empurra-empurra, mas não foram noticiadas prisões nem atos de violência.

¿A guerra cambial não é uma prioridade!¿, gritou Kim Jong-Kyum, de 29 anos, durante a manifestação, cujo objetivo era chamar a atenção para as consequências sociais da crise econômica. Os debates entre os chefes de Estado e de governo das principais economias do planeta se concentram na questão cambial, em particular sobre o iuan chinês e o dólar norte-americano, cujas cotações são consideradas muito baixas pelos demais países. ¿G-20, deixe de fazer o povo pagar pela crise¿, proclamava uma faixa exibida por sindicalistas. O protesto aconteceu sem graves incidentes e foi acompanhado de perto pela polícia. Para evitar problemas, em nenhum momento os ativistas poderão se aproximar dos líderes.

Imolação Uma mulher de meia-idade tentou atear fogo ao próprio corpo ontem na entrada do local onde ocorre a reunião do G-20, em Seul, mas os policiais conseguiram evitar a ação. Ela se banhou com tiner, um solvente altamente inflamável, diante do centro de convenções Coex, sede da cúpula dos líderes. A polícia, porém, impediu que ela consumasse o atentado contra si mesma. Antes de ser detida, a ativista gritou ¿assassino¿, em referência ao presidente sul-coreano, Lee Myung-Bak, anfitrião do encontro.

Dilma quer novas ações A presidente eleita, Dilma Rousseff, disse em Seul, onde participa como convidada da reunião do G-20, que a desvalorização da moeda dos Estados Unidos é prejudicial a todos os países. ¿Acho que é grave para o mundo inteiro a política do dólar fraco. Essa é uma questão que sempre causou problemas. A política do dólar fraco faz com que o ajuste norte-americano fique na conta das outras economias¿, avaliou Dilma após passeio pela capital sul-coreana.

Medidas adotadas pelo governo dos Estados Unidos e da China, que provocaram a desvalorização de suas moedas, devem estar entre os temas principais do encontro de líderes que ocorre hoje em Seul. O destaque será a decisão do Federal Reserve (Fed, o Banco Central dos EUA) de injetar US$ 600 bilhões na economia. ¿Acho que gera um protecionismo camuflado, como forma de se proteger¿, disse Dilma.

Ela também afirmou que considera ruim para o Brasil o fato de o país estar na reunião do G-20 com o título de detentor da moeda mais valorizada do grupo dos países mais ricos. ¿Isso não é bom para o Brasil. Vamos ter de olhar cuidadosamente, tomar todas as medidas possíveis¿, afirmou. Mas a presidente eleita não quis adiantar as possíveis ações. ¿Se eu tivesse as medidas, não diria aqui.¿