Título: "Crise é de representatividade"
Autor: Borges, Robinson
Fonte: Valor Econômico, 09/10/2006, Especial, p. A16

Seja Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ou seja Geraldo Alckmin (PSDB) o escolhido para ocupar o Palácio do Planalto, a composição da nova Câmara dos Deputados não deve comprometer a governabilidade do próximo presidente da República. Os cálculos são do cientista político Jairo Nicolau, professor e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). "Nenhum dos dois possíveis governos vai ter uma oposição mais dura do que os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva já tiveram, em termos de coesão e força", afirma Nicolau.

O professor avalia que nenhum dos dois terá um governo de maioria à sua disposição. Se Alckmin ganhar as eleições no dia 29, a base governista seria formada pelo PFL e pelo PSDB, somando cerca de 130 deputados. Teria ainda a possibilidade de angariar mais algumas legendas do centro-direita, o que poderia permitir chegar a uma base de 170 deputados. Caso Lula seja reeleito e o PMDB decida apoiar o PT no segundo mandato, a nova composição garantiria pouco mais de apoio, totalizando cerca de 180 parlamentares. O número, porém, estaria distante das 250 cadeiras necessárias para um governo com trânsito tranqüilo com o Congresso.

"Mas não vejo diferença significativa entre os dois campos políticos. Ambos teriam condições de governar desde que conseguissem coordenar o Legislativo, distribuindo os cargos de poder entre os partidos da base de forma equilibrada", explica.

Para o cientista político, a migração de parlamentares por causa da cláusula de barreira também deve alterar pouco o cenário. As mudanças, segundo ele, devem envolver entre 30 e 40 parlamentares de partidos pequenos, o que "não vai mudar a correlação de forças dentro da Câmara".

Na contra-mão da proposta da cláusula de barreira, criada para mitigar a fragmentação de partidos no Congresso, Nicolau avalia que essas eleições mostraram um enfraquecimento dos partidos políticos em detrimento do hiperindividualismo político, o que implicaria um problema no horizonte democrático. "Se não fortalecemos os partidos como unidades de representação, os microinteresses passam a predominar. Isso dá enorme instabilidade a qualquer votação", afirma o professor.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Nicolau.

Valor: É possível o novo presidente obter hegemonia no Congresso, considerando a bancada atual e os dois candidatos à Presidência?

Jairo Nicolau: Nenhum dos dois possíveis governos vai ter uma oposição mais dura do que os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva já tiveram, em termos de coesão e força. Ter uma oposição de 100 ou 150 parlamentares, qualquer um dos dois governos vai ter. Seriam 150 parlamentares contra e 300, eventualmente, a favor. Vamos ver o cenário se Alckmin ganhar: o PFL com o PSDB têm, somados, 130 deputados, com a possibilidade de conquistar mais alguns do centro-direita, que poderiam ser agregados, como os parlamentares do PPS. Chegariam, portanto, a 160 ou 170 deputados, garantindo margem de saída sem o apoio do PMDB. Agora, se o PMDB for com o PT, a composição do presidente reeleito Luiz Inácio Lula da Silva teria um pouco mais, na casa dos 170, além dos partidos pequeninos, o que poderia totalizar 180 parlamentares. No lugar das 19 legendas que tivemos nessa legislatura, é possível que tenhamos 8 ou 10 siglas.

Valor: Mas seja a coligação PSDB-PFL, seja a aliança entre o PT e o PMDB não se chegará a 250 cadeiras, número que seria uma base para formar e aprovar uma série de proposições necessárias.

Nicolau: Sim, esse é o número para poder governar com certa tranqüilidade. Mas não vejo diferença significativa entre os dois campos políticos. Ambos teriam condições de governar desde que conseguissem coordenar o Legislativo, distribuindo os cargos de poder entre os partidos da base de forma equilibrada. Isso envolve ter sensibilidade para temas que são palatáveis para o Congresso naquele momento determinado.

Valor: Como deve ser a migração dos pequenos partidos para evitar os efeitos da cláusula de barreira?

Nicolau: O que está se delineando é uma redução da fragmentação da Câmara. Independentemente da interpretação dominante sobre o que é o funcionamento parlamentar, se forem realmente cortar os direitos dos micropartidos como se fala, isso deve acelerar os processos de fusão dos pequenos partidos. No lugar das 19 legendas que tivemos nessa legislatura, é possível que tenhamos 8 ou 10 siglas.

Valor: Mas isso não muda a natureza da coligação presidencial?

Nicolau: Não. Se você observar bem essas pequenas legendas, em especial as que conquistaram menos de 20 cadeiras, elas formam uns 10 partidos pequenos, com 2 ou 3 cadeiras. Se esses 30 ou 40 parlamentares de partidos pequenos migrarem para qualquer outra legenda, não vai mudar a correlação de forças dentro da Câmara.

Valor: O namoro entre o PMDB e as pequenas legendas vai ser mais intenso, pela característica, digamos, mais aberta do PMDB?

Nicolau: Se o Lula vencer, o PMDB tem uma enorme vocação, para quebrar a barreira das 100 cadeiras no Congresso. Vai ter uma atração natural. Não seria necessária a cláusula de 5% do total de votos para deputado federal. Seria a troca natural na direção dos partidos governistas, que tem acontecido sempre no Brasil. Por inércia, o PMDB ganha mais uns 10, 15 deputados. O PMDB tem tudo para ser um estuário dessas migrações de partidos na Câmara e engordar um pouco a base do governo, ainda que sempre com a característica de 1/3 contra o governo e 2/3 a favor do governo.

Valor: O senhor avalia que essa nova Câmara não é muito mais fragmentada do que as anteriores?

-------------------------------------------------------------------------------- Ambos teriam condições de governar desde que conseguissem coordenar o Legislativo --------------------------------------------------------------------------------

Nicolau: Talvez seja uma das mais fragmentadas que já tivemos. É possível que a dispersão de forças seja maior ainda do que na eleição anterior. Isso porque as siglas maiores perderam, relativamente, dos partidos médios e pequenos. Todas as legendas ficaram com um pouquinho de cadeira. As bancadas, me parecem, adquiriram um componente mais municipalista, com políticos que têm um território mais circunscrito. Nesta eleição, percebeu-se um amplo território para o hiperindividualismo. Muitos esconderam suas legendas. Se cortássemos as interrupções de um partido para outro no programa eleitoral gratuito na TV, não seria possível identificar as diferenças partidárias, pois os discursos eram o da reputação pessoal. A idéia era: "Você me conhece, sou o Fulano de Tal da região 'x', ou do sindicato 'y'". Um exemplo é a minha cidade, Nova Friburgo (RJ). Havia muitos anos que ela não elegia um deputado estadual. Nestas eleições, elegeu dois. Entre 40% e 50% da população votaram nesses dois candidatos.

Valor: A prática do que o senhor chama de hiperindividualismo não implica o empobrecimento da política, pois os partidos perdem força?

Nicolau: Esses dois rapazes podem ser ótimos deputados. Mas o vínculo dos friburguenses é com esses dois deputados. Não importa se eles estão no partido A ou B. Daqui a pouco, eles podem mudar de partido, mas desde que para o eleitor de Nova Friburgo os dois façam um bom trabalho e levem benefícios para lá, está tudo OK. Mas se você amplia esse hiperindividualismo - que não é só o hiperindividualismo territorial, mas também o da categoria, do segmento, do ruralismo, do grupo de interesse -, cultiva-se uma relação do político com o eleitor sem a intermediação dos partidos. Sou eu, o político, e os meus eleitores daquela circunscrição. Sou eu e os delegados da polícia que me elegeram, por exemplo. Criamos, assim, uma espécie de vereador federal ou representante corporativo federal. Se não fortalecemos os partidos como unidades de representação, os microinteresses passam a predominar. Isso dá enorme instabilidade a qualquer votação.

Valor: Essa dispersão de forças partidárias não pode favorecer uma crise de governabilidade para o próximo presidente?

Nicolau: Nenhum dos presidentes, desde a Constituição de 1988, teve graves problemas de governabilidade por causa de falta de apoio parlamentar para suas proposições. Não me lembro do Congresso dizer "não" sucessivamente para proposições do governo. Vejo, na verdade, mais sintomas de crise no lado da representação do que no da governabilidade. Esse Congresso, como disse, aprofundou a tendência da representação do hiperindividualismo. Clodovil Hernandes (PTC), por exemplo, é um representante puro dele com seus eleitores. Essa relação foi cultivada por meio de sua atuação na TV. Não há intermediação partidária. É claro que ele pode ser um excelente deputado, participando das comissões. Mas não é isso o que está em jogo. Quando você começa a ter todos esses interesses, que não são mais coordenados por partidos, é muito perigoso. O que o partido faz? Aglutina todos esses interesses, antes até das eleições, e plasma em programas comuns, em que se defendem pontos de vista para negociar coletivamente.

Valor: O hiperindividualismo não é um contra-censo à idéia da cláusula de barreira?

Nicolau: Sim, mas nenhum partido ficou inibido com as possíveis perdas por causa da cláusula de barreira. Todo mundo foi à vida. Os pequenos e médios partidos arriscaram sua sorte. Um componente dessa eleição é que as coligações de partidos para a Câmara foram mais intensas do que ocorrera nos últimos anos. Cada Estado teve seu padrão. Isso talvez explique o porquê - tirando o sucesso do Prona e de Clodovil - os partidos maiores perderam muitas cadeiras para os partidos coligados.

Valor: Qual o impacto da crise de representação que o senhor mencionou nesse novo governo?

Nicolau: A governabilidade pensada como bases de apoio no Legislativo vai bem. O problema é que essa é uma condição necessária, mas não é suficiente. É preciso ter uma capacidade de operação política, que faltou ao governo Lula nos três últimos anos de seu mandato. Depois do escândalo Waldomiro Diniz, o ex-ministro José Dirceu perdeu força e o governo não conseguiu mais um operador da estatura dos seus desafios. Era preciso um operador com legitimidade, com bom trânsito entre os políticos. O novo presidente tem de, urgentemente, inventar um coordenador político, um ministro que tenha o respeito da oposição e possa fazer esse papel. Isso é fundamental para a operação do presidencialismo brasileiro. Não é só ter a contabilidade do número de cadeiras. O sistema político tem de ser representativo e tem de garantir o mínimo de governabilidade.

Valor: A emergência do hiperindividualismo, dos microinteresses, e da troca de legenda, não constituem um problema que pode ser inibido com a reforma política?

Nicolau: Além de uma certa rebeldia parlamentar, de uma incapacidade dos partidos de controlarem os representantes, sim, constituem. E uma reforma política deve focar, de fato, o fortalecimento dos partidos, via inibição das trocas de siglas e das coligações. O problema no Brasil não é a troca, mas a endemia, o volume e magnitude com a qual ela acontece. Uma ou duas trocas aparecem em todas as legislaturas mundo afora. O deputado se desentendeu, mudou de idéia, quis criar um novo partido, isso é natural. A nova direita européia apareceu porque surgiu um tema novo, o da imigração. Enfim, um sentimento nacional que não existia havia anos. Portanto, não podemos congelar a política. O fato é que, dificilmente, vamos ultrapassar 2007 sem ter uma reforma política. Isso precisa ser feito. Não só porque o tema está na ordem do dia. Temos de matar esse tópico rápido e tornar a relação do Executivo com o Legislativo mais cristalina.

Valor: Políticos de todos os matizes e até do próprio Partido dos Trabalhadores (PT), envolvido no mensalão, atribuem ao sistema de financiamento de campanha a culpa pelo escândalo. Como uma reforma pode resolver essa questão?

Nicolau: O tema do financiamento ficou no meio do caminho. Ninguém acredita que essa campanha resolveu o problema do caixa 2. Isso é de um cinismo total. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apertou um pouco, mas todos sabem que ele não tem condições de auditar as contas, e os deputados fazem o que querem em suas prestações de contas. Os caminhos para melhorar as leis de financiamento de campanha estão muito distantes do ideal. No entanto, os tópicos podem ser discutidos no pacote da reforma. Há várias opções no ar que precisam de uma vez por todas ser equacionadas. Isso é preciso, porque acho que não é só um problema urgente de aperfeiçoamento da representação política no Brasil. Há o efeito contrário também.

Valor: Como assim?

Nicolau: Quanto mais você demora a fazer uma reforma, prometendo fazê-la, mais você cria uma expectativa de que uma reforma pode fazer muito. Daqui a pouco, as pessoas vão achar que a reforma vai resolver todos os problemas e acreditar numa expressão que odeio e é dita por muitos políticos - certamente por que não sabem o que é uma reforma política - que é: "A reforma política é a mãe das reformas". A cada debate na televisão vejo alguém dizer isso. Cria-se, então, uma expectativa a respeito da reforma, para que ela faça coisas que não pode realizar. O que vai acontecer é que a reforma dá mais força aos partidos, tenta dar mais inelegibilidade ao sistema, manutenção das bancadas no tempo. No Brasil, a cada semana há uma bancada, seja no número de cadeiras ou nos personagens que estão lá, porque muitos saem, e entra o suplente do partido que está coligado, o que altera a composição. Isso dá uma enorme instabilidade ao presidente.

Valor: O fato de Clodovil Hernandes ser um dos deputados mais votados de São Paulo, com 493 mil votos, fez com que levasse ao Congresso o colega de partido, Coronel Paes de Lira, que fez escassos 6,6 mil votos. Não é uma distorção?

Nicolau: O sistema funciona de forma aleatória. O eleitor vota num nome e não sabe que existe uma sobra ali que, a partir de um patamar, é transferida para o candidato seguinte da legenda de seu candidato. São aspectos muito técnicos. O eleitor não faz essa conta. Isso se deve ao sistema eleitoral brasileiro e não tem nada de errado com isso. Mas qual é o aparente estranhamento? Com exceção de alguns poucos eleitores que votam na legenda - que nesta última eleição deve ter ficado em torno de 10% -, a maioria vota em nome. Só que a conta para distribuir cadeiras não são as 70 pessoas mais votadas de São Paulo. É uma contabilidade que junta todos os nomes de um partido, soma e vê quanto daquele partido atravessou aquela barreira, que é o coeficiente eleitoral. E isso significa quantas cadeiras aquele partido vai fazer. Mas se um nome concentra muitos votos, se o segundo atrás dele tem pouco ou muito, pouco importa. Mas a verdade é que ao votar no Clodovil estava fazendo uma cadeira para o PTC.