Título: A festa dos servidores com dólares
Autor: Hessel, Rosana
Fonte: Correio Braziliense, 07/11/2010, Economia, p. 14

MÁQUINA PÚBLICA O contribuinte bancou US$ 51,1 milhões em diárias fora do país, o suficiente para custear 1,7 mil casas populares

O meu, o seu, o nosso dinheiro recolhido em impostos está sendo torrado sem qualquer constrangimento por servidores públicos dos três poderes em viagens internacionais. Singelamente, a justificativa para a gastança é trabalho. Alguns, alegam acompanhar ministros, parlamentares e juízes em missões oficiais. A maioria, no entanto, está embolsando diárias polpudas para participar de seminários e feiras com o intuito de buscar conhecimento para ser agregado à máquina pública ¿ argumento que pouquíssimos conseguem comprovar.

O resultado disso foi que, somente nos nove primeiros meses deste ano, o Tesouro Nacional bancou US$ 51,1 milhões (R$ 86 milhões) em ajudas de custo a funcionários públicos em viagens ao exterior, um montanha de dinheiro suficiente para comprar cerca de 3,4 mil carros populares de R$ 25 mil ou 1.790 casas do programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal, orçadas em R$ 48 mil a unidade no Distrito Federal.

Esse volume é cerca de 5 vezes maior do que o desembolsado em todo o ano de 2000 (US$ 9,3 milhões ou R$ 18,1 milhões, em valores da época) e está prestes a superar o recorde do ano passado, quando foram liberados US$ 54,8 milhões (R$ 95,3 milhões). Mas que fique bem claro: esses números representam apenas diárias. Não incluem passagens aéreas nem as despesas relativas à Presidência da República, protegidas por sigilo. Ou seja, a fatura pode ser, no mínimo, duas vezes maior, calculam técnicos do Ministério da Fazenda.

Curiosamente, os gastos ¿ todos registrados no sistema de câmbio do Banco Central ¿ disparam em meses que antecedem às férias, indicando que as viagens a trabalho acabam se transformando em lazer. Em junho de 2002, por exemplo, as despesas honradas pelo Tesouro chegaram a US$ 10,4 milhões ¿ 10 vezes mais do que a média de US$ 1,5 milhão dos meses anteriores. Em julho de 2009, as despesas com diárias chegaram a US$ 18 milhões, um terço do total registrado em todo o ano. Em junho deste ano, não foi diferente: gastos de US$ 19,4 milhões ou quase 40% do total em nove meses contabilizado pelo BC.

Desdém do Planejamento A justificativa dentro do governo é a de que, com o Brasil chegando ao posto de 8ª economia do mundo, cada vez mais servidores se deslocam para fora do país, participando de ¿importantes discussões¿. Na avaliação do Ministério do Planejamento, inclusive, os gastos com diárias computados pelo BC não representam ¿quase nada¿ perto das despesas que os brasileiros gastam com turismo internacional ¿ US$ 11 bilhões nos 12 meses terminados em setembro deste ano.

Para o Banco Central, no entanto, é preciso ¿olhar com cuidado¿ a evolução das despesas em dólar do funcionalismo público. A preocupação é tamanha que, de quatro meses para cá, o chefe do Departamento Econômico da instituição, Altamir Lopes, passou a dar publicidade aos números nas divulgações periódicas das contas externas, cada vez mais deficitárias ¿ o rombo deste ano deve encostar nos US$ 50 bilhões e quase dobrar em 2011, deixando o Brasil altamente dependente de capital estrangeiro.

O desdém do Ministério do Planejamento contrasta com a surpresa de Gil Castello Branco, secretário-geral da Contas Abertas, uma organização não governamental (ONG) especializada em dar transparência aos números que o setor público insiste em manter no anonimato. ¿Sinceramente, eu não tinha ouvido falar destes dados liberados pelo BC. Mas, com certeza, são muito relevantes e precisam ser estudados com rigor para entendermos o que realmente está acontecendo¿, diz.

A Controladoria-Geral da União (CGU) também mostra-se surpresa ante a transparência dada pelo BC à ajuda de custo a servidores do Executivo, do Judiciário e do Legislativo em viagens internacionais. O órgão responsável por garantir a moralidade no trato com o dinheiro dos contribuintes só se pronunciou sobre a gastança depois que o Correio indicou que todas as informações estão publicadas na página do Banco Central na internet. Mas, para não ratificar o total desconhecimento, a CGU confrontou os dados do BC com outro relatório ¿ esse com valores em reais das despesas mensais das diárias do Executivo federal no exterior. Também no documento é possível comprovar a disparada dos gastos, sobretudo nos meses que antecedem às férias ou em dezembro, quando boa parte do funcionalismo cruza os braços.

Jogo de empurra Os dados da CGU vão de 2005 a 2010 e foram compilados do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). Em dezembro de 2005, por exemplo, as diárias consumiram R$ 12,1 milhões (US$ 7,21 milhões), quantia 64% superior à registrada no mês anterior. Em dezembro do ano passado, o filme se repetiu: as despesas somaram R$ 14,60 milhões (US$ 8,69 milhões), volume 58,2% maior do que o de novembro.

Apesar das coincidências, a CGU, por meio de sua assessoria de imprensa, garante que está atenta e ¿os gastos com diárias e passagens são permanentemente acompanhados, e sempre que é encontrada alguma transação atípica ou crescimento desproporcional de despesa, os órgãos responsáveis são notificados, a fim de que apresentem justificativas e, quando for o caso, adotem as providências para sanar a situação¿.

O Tribunal de Contas da União (TCU) prefere não entrar na polêmica e alega que cabe a cada órgão do governo federal e dos demais poderes investigar internamente se há alguma irregularidade na gastança com diárias de servidores no exterior. O órgão informa que só inicia um processo de investigação quando há alguma denúncia de irregularidade, o que ainda não ocorreu neste ano.

Na opinião de Castello Branco, as dificuldades que os órgãos de controle têm para evitar o desperdício de dinheiro público decorrem do fato de a transparência nas contas públicas ainda ser algo recente no país. ¿Há muito a ser melhorado, para que o cidadão saiba exatamente se os funcionários públicos estão gastando com parcimônia e consciência os recursos arrecadados por meio de uma pesadíssima carga tributária¿, afirma.

Na tentativa de dar uma resposta aos contribuintes, alguns ministérios começam a obrigar os servidores, no retorno das viagens, a fazerem palestras sobre a empreitada fora do país como uma maneira de justificarem as despesas. Mas ainda é muito pouco perto do que exige a sociedade. (Colaborou Victor Martins)