Título: A luta pelo poder
Autor: Vaz, Vviane
Fonte: Correio Braziliense, 07/11/2010, Mundo, p. 22

AMÉRICA LATINA Ex-guerrilheiros que ajudaram a combater as ditaduras militares em seus países tornaram-se presidentes por meio do voto popular. Fenômeno foi respaldado pela ascensão eleitoral da esquerda, que abandonou discurso radical

Os tempos são outros. Os jovens guerrilheiros da América Latina amadureceram, deixaram o caminho das armas e hoje conquistam o poder pelo voto. Eles estão por toda parte: na situação e na oposição, espalhados pelo continente como presidentes ou vices, assessores e ministros. Muitos deles recorreram às armas para tentar derrubar sangrentas ditaduras militares. Alguns foram chamados terroristas e caíram prisioneiros do sistema vigente na época. No Brasil, é o caso de Dilma Rousseff, que passará de ministra-chefe da Casa Civil a presidente da República em janeiro de 2011.

Dilma garante que não chegou a pegar em armas quando jovem, mas integrou a guerrilha urbana Vanguarda Armada Revolucionária Palmares. Entre 1970 e 1972, foi encarcerada e torturada. ¿Minha função era de retaguarda. Os processos militares que resultaram em minha condenação mostram isso com clareza. Nunca fui processada por ações armadas¿, declarou a uma revista, em junho deste ano. ¿Tenho muito orgulho de ter combatido a ditadura do primeiro ao último dia. A ditadura foi muito ruim. Cassaram os partidos políticos, fecharam órgãos de imprensa, criaram mecanismos de censura, torturaram¿¿, enumera a hoje presidente eleita.

Para o analista político peruano Isaac Bigio, ¿Dilma compartilha, com os atuais presidentes do Uruguai (José Mujica) e da Nicarágua (Daniel Ortega), além dos vice-presidentes da Bolívia (Alvaro García) e de El Salvador (Salvador Sánchez), o status de ter evoluído a partir da `ala armada do socialismo¿, até se tornarem servidores públicos da `ala eleitoral capitalista¿¿. Por outro lado, no artigo Das armas às urnas, o jornalista mexicano Jesús Ramírez Cuevas destaca que a ascensão eleitoral da esquerda na América Latina permitiu a chegada ao poder de uma geração de ex-guerrilheiros. De 1960 a 1980, os jovens de esquerda se inspiraram no triunfo da Revolução Cubana em 1959 para estender a luta guerrilheira por todo o continente, em um período marcado pela morte de Ernesto Che Guevara, na Bolívia, e de Salvador Allende, no Chile. Outros jovens se deixaram levar pela ¿Doutrina de Segurança Nacional¿ dos Estados Unidos e instauraram ditaduras militares de direita, que também se valeram das armas. ¿Ao longo de três décadas, a maioria dos grupos guerrilheiros rurais e urbanos foi derrotado militarmente por regimes castristas ou supostamente democráticos, que cometeram violações contra os direitos humanos¿, explica Cuevas. ¿Outras facções acabaram se dissolvendo, com a exceção das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), a guerrilha mais antiga do continente, fundada em 1964¿, acrescenta.

Estratégia moderada Segundo o jornalista mexicano, muitos dos ¿velhos lutadores¿ abandonaram o caminho das armas e mudaram o discurso revolucionário por um mais ¿moderado e realista¿ ¿ um atrativo para ganhar as eleições. Na Guatemala, o presidente social-democrata, Álvaro Colom, teve que se afastar da ex-guerrilha União Revolucionária Nacional Guatemalteca para ser eleito. Em 1999, saiu candidato e perdeu as eleições. Em 2007, outro ex-guerrilheiro, Miguel Ángel Sandoval, fundador do desaparecido Exército Guerrilheiro dos Pobres, conseguiu apenas 2% dos votos. Afastado do passado guerrilheiro, Colom convenceu os eleitores guatemaltecos de que merecia a Presidência entre 2008 e 2012. No Uruguai, a velha guerrilha tupumara é o exemplo inverso: o ex-presidente Tabaré Vázquez conquistou o poder pelo apoio do movimento no país. De 21 organismos que integravam a Frente Ampla, os ex-militantes do Movimento de Libertação Nacional-

Tupamaros (MLN-T) responderam por 30% dos votos da coligação. Em 2009, o carismático José ¿Pepe¿ Mujica, dirigente histórico da facção, provou-se um ex-guerrilheiro atualizado, capaz de unir os apelos sociais às demandas econômicas, que lhe garantiram o comando do país.

No Brasil, Dilma nem louvou nem fez questão de lembrar seu passado guerrilheiro. Ela preferiu concentrar a campanha eleitoral em sua carreira na administração do Estado. Na entrevista de junho, Dilma destacou que seu objetivo prioritário era livrar a população da ditadura e melhorar a vida dos brasileiros. ¿Depois daquela fase eu continuei lutando pela democracia no antigo MDB e no PDT. Nesse processo, eu mudei com o Brasil, mas jamais mudei de lado¿, afirma a ex-guerrilheira.

Militantes na política

Lideranças famosas exerceram posições em guerrilhas no passado e chegaram a combater durante guerras civis

Argentina O casal Cristina e Néstor Kirchner convidou os antigos Montoneros ¿ uma guerrilha de direita, de cunho católico e nacionalista, que atuava entre 1970 e 1979. Ex-integrantes do grupo, Rafael Bielsa e Enrique Albistur assumiram, respectivamente, a pasta das Relações Exteriores e a Secretaria dos Meios de Comunicação.

Brasil Colaboradores muito próximos do presidente Lula da Silva foram guerrilheiros. Dilma Rousseff, 62 anos, militou na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares na década de 1970 e toma posse em 1º de janeiro próximo. O ex-chefe de gabinete José Dirceu pertenceu ao Movimento de Libertação Nacional.

Bolívia Álvaro García Linera, 48 anos, militou na efêmera guerrilha indígena Tupac Katari, no início dos anos 1990. Em janeiro de 2006, assumiu como vice de Evo Morales.

El Salvador O vice-presidente de El Salvador, Salvador Sánchez Cerén, 66 anos, foi membro do comando geral da Frente Farabundo Martí (FMLN), que agrupou outros grupos e se definiu como marxista leninista durante a guerra civil da década de 1980. Foi delegado nas negociações que levaram aos acordos de paz de 1992.

Nicarágua Daniel Ortega, 64 anos, guerrilheiro que comandou o governo revolucionário sandinista de 1979 a 1990, voltou ao poder pelas urnas em 2006.

Uruguai José Mujica, 76, veterano do grupo armado Tupamaros nos anos 1960-1970, passou 14 anos preso e tornou-se presidente, por meio do voto, em 1º de março passado. O ex-chefe de Estado Tabaré Vázquez, líder do Frente Amplo, foi eleito em 2005 com 30% dos votos da ex-guerrilha urbana Tupamaros, simpatizantes da Revolução Cubana.

Venezuela O país tem guerrilheiros no governo e na oposição. O atual ministro de Energia, Alí Rodríguez, fazia parte da guerrilha marxista. Na oposição, o jornalista Teodoro Petkoff foi membro da guerrilha comunista e é o fundador do Movimento al Socialismo (MAS), que se opõe a Hugo Chávez.