Título: Brecha para doações ocultas é três vezes mais utilizada nas capitais
Autor: Klein, Cristian; Di Cunto, Raphael
Fonte: Valor Econômico, 31/08/2012, Política, p. A8

A primeira prestação parcial de contas das eleições municipais, divulgada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), indica um padrão de arrecadação bastante distinto entre as capitais - onde a participação de possíveis doações ocultas chega a 65% - e a totalidade dos municípios brasileiros, onde o percentual é menor, de 21%. O contraste se reflete na opinião de especialistas sobre o quanto o financiamento de campanha no país é ou não transparente.

De acordo com o juiz Márlon Reis, um dos articuladores do projeto que resultou na Lei da Ficha Limpa, há ainda muito a se avançar na identificação do caminho percorrido pelo dinheiro que vai dos doadores para partidos e candidatos. No entanto, para o cientista político Bruno Speck, da Universidade de Campinas, o modelo brasileiro já é um dos mais detalhados do mundo.

"A coisa realmente preocupante é o padrão ultraconcentrado de arrecadação. Há um alto grau de dependência dos candidatos em relação a dois ou três grandes doadores. Nisso, o Brasil é único. Mas, quanto à transparência, as últimas exigências puseram o país no patamar dos Estados Unidos, com uma prestação de contas concomitante à campanha. Conheço poucos países que têm dados tão detalhados", afirma Bruno Speck.

Márlon Reis concorda que houve melhora no sistema - fruto da movimentação da sociedade -, mas diz que há muitas brechas que dificultam a transparência. "Não é possível se contentar com um modelo que permite maquiar o vínculo entre doador e candidato", critica o juiz.

O cientista político, por sua vez, destaca as seguidas mudanças que entraram em vigor nas eleições de 2008, 2010 e agora em 2012, que tornaram o ambiente, em sua opinião, menos nebuloso - embora mais complexo. "É preciso que alguém traduza os dados para o cidadão. Mas a crítica de que o sistema não é transparente não procede. Há dez anos havia muita suspeita e o argumento era aceitável. Hoje quem critica deveria apontar os avanços. Na eleição de 2010 soubemos detalhadamente para onde foram cerca de R$ 5 bilhões", diz o pesquisador.

A presença das doações ocultas, por outro lado, ainda cria zonas de sombra na prestação de contas de campanha. O expediente é utilizado quando um financiador não quer que seu nome seja vinculado a determinado político. A doação é feita para o partido ou comitê eleitoral que, por sua vez, repassa o valor para o candidato, o que impede identificar de onde saiu o dinheiro e para onde foi. "Se não fecharmos essa brecha, em breve todas as grandes doações ocorrerão via partido", prevê Márlon Reis.

A brecha, na opinião de Reis, é ainda mais nociva do que aparenta. "A empresa pode camuflar a doação. Pode dar dinheiro para o partido, que usa esse recurso para sua manutenção e pega do fundo partidário para repassar ao candidato. É impossível identificar esse tipo de vínculo", afirma. O problema se agrava, diz, porque as doações aos partidos têm menos restrições - eles podem receber dinheiro, por exemplo, de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip).

Segundo o juiz, esse tipo de doação é ainda mais difícil de rastrear porque só aparece na prestação de contas do partido, em abril do ano seguinte. "Aí já não dá mais para pedir a impugnação do prefeito eleito se for constatada doação irregular", afirma. Para tentar mudar isso, Reis assinou ato ontem em que obriga os diretórios da 508º zona eleitoral do Maranhão, onde atua, a indicarem durante a eleição a fonte dos recursos e os candidatos que receberam.

Esse nível de publicidade, porém, é exceção nas eleições do país. Na primeira parcial da prestação de contas destas eleições, cerca de 65% das receitas destinadas aos candidatos a prefeito nas 26 capitais têm como origem os partidos ou comitês eleitorais, o que impede saber a origem e destino exato de cada doação. O percentual, contudo, é três vezes menor (21%) quando se contabilizam as receitas em todos os 5.566 municípios.

Para Bruno Speck, isso mostra que nem todos os recursos destinados a partidos seriam doações ocultas. "Muitas vezes, se insiste numa interpretação que desconhece o papel dos partidos como intermediários. Parte-se da premissa de que o único destinatário legítimo do financiamento é o candidato. Os partidos têm um poder crescente no Brasil. Já que não controlam totalmente quem serão os candidatos, como num sistema de lista fechada, utilizam o horário eleitoral e o financiamento para traçar suas estratégias", defende.

O motivo pode ser a prioridade dada à vitória nas capitais, passo crucial para a conquista ou manutenção dos governos estaduais. A maior proporção de doações de partidos nas receitas de candidatos das capitais poderia significar justamente o maior peso dado pelas legendas ao desempenho nestas cidades.

Líder em doações de partido e comitês para os candidatos a prefeito, o PSB mostrou toda a prioridade que dá à vitória nas capitais neste ano. Seu presidente nacional, o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, tem ambições presidenciais, que dependem do fortalecimento do partido, hoje de porte médio. Para sustentar este projeto, o PSB rompeu com o PT no Recife, Belo Horizonte e Fortaleza e, impulsionado pelo peso destas capitais, surge como o maior arrecadador de recursos potencialmente ocultos, com R$ 6.818,59 por candidato a prefeito.

O PRB, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus e que lidera a disputa em São Paulo, com Celso Russomanno, é o segundo no ranking - em parte, devido ao pequeno número de candidaturas se comparado a partidos maiores. PMDB e PT aparecem em terceiro e quarto lugar na lista.

O segundo ponto observado por Bruno Speck é o progressivo autofinanciamento eleitoral. A tendência, de acordo com levantamento do Valor, se confirma no conjunto dos municípios brasileiros, embora não nas capitais, onde o custo das campanhas e as doações via partido (ocultas ou estratégicas) são maiores. Nestas cidades, a rubrica "recursos próprios" é responsável por 4,7% das receitas dos candidatos a prefeito. Nas cinco maiores capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza e Salvador) é de apenas 0,5%. Mas nos 5.540 municípios - retiradas as capitais - ela representa a principal fonte de receitas: 35,8%.

"Esse problema pode parecer menos traumático. Mas é um retrocesso depois de se superar a fase em que a política era limitada a um determinado estrato social. Ter criado uma classe que possa viver da política como profissão foi um avanço das democracias. Por vezes, a crítica à classe política é a crítica à chegada de um novo estrato ao processo decisório", afirma Speck.