Título: O Poder Judiciário e o valor das provas das CPIs
Autor: Basile, Juliano; Magro, Maíra
Fonte: Valor Econômico, 31/08/2012, Política, p. A12

Seria infantil deixar de reconhecer que nós, todos nós, somos ao mesmo tempo agentes e alvo de uma disputa por atenção a palcos diversos, com naturais reflexos políticos. A condenação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de um atual candidato a prefeito de uma importante cidade decerto abala algumas estruturas, enquanto, no prédio em frente, a CPI do Cachoeira remexe com outras forças que adorariam que o mensalão não lhes cortasse grande parte do espaço nos jornais. São temas políticos em que, em tese, eu não deveria me meter, mas essa bipolaridade é pano de fundo para a questão jurídica que, já se nota, pode dar as cartas no julgamento atual no Supremo: quanto vale uma prova produzida em CPI?

Era já anunciado que a pergunta teria que ser respondida no transcorrer do processo do mensalão, até porque, tecnicamente, trata-se de uma questão legal a ser interpretada: o artigo 58 da Constituição Federal atribui textualmente às CPIs "poderes de investigação próprios de autoridades judiciais", e daí é fácil inferir que, no atrito elementar da tripartição republicana, os parlamentares avoquem para si o poder constitucional de agir como juízes. Depois, ficariam insatisfeitos se vissem o resultado das investigações da comissão parlamentar desconsiderado pelas autoridades judiciárias permanentes. De outro lado, como dito, agora do valor da CPI depende, sim, o futuro de alguns réus da Ação Penal nº 470, e de tudo isso vem um embate que invoca da alta Corte uma resposta final.

Mas se podem identificar dois elementos que não autorizam, de imediato, que se considere o produzido em CPIs como prova vinculante, obrigatória ao convencimento do Judiciário. Primeiro que, quando se concedem aos parlamentares transitoriamente "poderes de juiz", estes são algo pouco mais amplo que os meramente inquisitoriais. Ou seja, poderes de levantar dados em preliminar, para que, depois, sejam refeitos na medida do possível, diante de advogado, promotor e juiz. É o trabalho do chamado "inquérito", que no caso é transferido da polícia, subordinada ao Executivo, para a "comissão parlamentar", do Legislativo. E o segundo elemento é de lamentável natureza fática: realizar interrogatórios enquanto os inquisidores assistem no laptop a vídeos pornográficos das futuras musas da Playboy não é exatamente uma atitude que desperte no Judiciário e na população a credibilidade suficiente sobre a seriedade dos seus atos; menos ainda, das provas que dali nasçam. Daí um juiz experiente, em especial se já frequentara os bancos da advocacia, observa o quanto produzido exclusivamente em delegacia de polícia, ou mais raramente nas CPIs, com cuidado. Ou com desconfiança.

Em minha opinião, o texto da Constituição insinua o que os deputados intuem: que o grande poder da CPI se concentra no momento político de sua instauração e de seu desenrolar. Para isso se a consagra ao Congresso, não mais. No caso do mensalão, seu auge do poder estava no interregno em que - como diziam quase todos os prognósticos da época - o governo Lula sangraria até a morte, diante das estocadas que lhe representavam cada depoimento nas sessões do inquérito parlamentar de então. Pretender mais que isso é, agora sim, usurpar o poder do próprio Judiciário, a quem cabem os interrogatórios serenos, sem pressão, nos quais, ao contrário de o que pensam inquisidores inexperientes, em regra o interrogado deixa escapar as fissuras que no futuro lhe condenarão. Se me é permitida a comparação, o bom entrevistador sabe que, se enfrenta o entrevistado, ou retruca, ou puxa para si o protagonismo do ato, deixa de colher as melhores falas, porque o entrevistado, constrangido, cala-se. Ou mente. Os grandes furos de reportagem brotam do ambiente sereno criado pelo entrevistador, e no interrogatório não tem porque ser diverso. O bom juiz conhece isso, mas o parlamentar - como agora se pode revivenciar na CPI do Cachoeira - custa a aprendê-lo.

Por tal técnica e especialização, na queda de braço do valor probatório da CPI leva vantagem ampla o Poder Judiciário, e é bom que seja assim. Não que eu creia em um Judiciário tecnicamente perfeito ou, menos ainda, incorruptível, mas é sinal de evolução social que as forças da República delimitem seus papéis de acordo com a previsão constitucional. O ideal, daí, seria que o Supremo, neste caso, se expusesse menos, apenas porque quem tem mesmo poder deve falar pouco, e firme. Mas não sobrevaloro: as câmeras e as vaidades são, nesse horizonte que vai da corrupção extrema à efetivação da democracia, o menor dos entraves.

Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de direito penal da Universidade de São Paulo (USP/FDRP) e membro da União Brasileira de Escritores.