Título: A infidelidade partidária no Brasil e nos Estados Unidos
Autor: Roma, Celso
Fonte: Valor Econômico, 10/10/2006, Opinião, p. A10

Há um cenário propício à instabilidade da composição partidária da Câmara dos Deputados. Esse fenômeno recorrente da política brasileira pode se agravar na 53ª legislatura, logo após os deputados tomarem posse do seu mandato, em fevereiro de 2007. A conjunção de dois fatores contribuirá para que isto ocorra. O primeiro diz respeito ao fato de que o número de cadeiras conquistadas pelos pequenos partidos em 2006 é maior que o da eleição passada, subindo de 101 para 118. O segundo fator se refere à vigência da cláusula da barreira, a qual restringirá a participação desses mandatários nas comissões legislativas e na mesa diretora, bem como o acesso da sua legenda ao fundo partidário e ao horário de propaganda política. Tais postos e recursos estarão disponíveis por enquanto ao PMDB, PSDB, PFL, PP, PT, PDT e PSB. Esses partidos poderão usá-los para arregimentar os deputados que se elegeram pelo PV, PPS, PTB, PL, PCdoB, PSC, PTC, PSOL, PMN, Prona, PHS, PTdoB, PAN e PRB.

A ocorrência de defecções partidárias reacenderá o debate sobre a necessidade de serem implantadas, numa eventual reforma política, regras que inibam essa prática, de modo que seja respeitado o princípio segundo o qual um mandatário deve permanecer filiado ao seu partido. Os críticos, de fato, estão corretos quando afirmam que os deputados freqüentemente migram de uma legenda à outra em busca de oportunidades para promoverem sua carreira política.

Desde o retorno à democracia até a última legislatura, cerca de um terço dos deputados abandonou o partido pelo qual assumiu seu mandato, numa casa composta atualmente por 513 membros. Ao longo de vinte anos, centenas de deputados já trocaram de partido e alguns deles, mais de quatro vezes numa legislatura. Os motivos que os levam a migrarem são bem conhecidos. Com o ingresso em outra sigla, os parlamentares pretendem angariar mais verbas orçamentárias, ocupar postos na organização da Câmara, conseguir uma candidatura para disputar outro cargo eletivo e/ou obter o apoio do presidente da República. A mudança de partido consiste em uma estratégia usada pelos deputados para adquirirem visibilidade junto aos eleitores e, assim, conquistarem seus votos.

O problema é que os reformistas apresentam um diagnóstico parcial da infidelidade partidária, desconsiderando que os deputados leais e os desertores têm um desempenho semelhante no processo deliberativo da Câmara e que a maior parte das mudanças de filiação é consistente do ponto de vista ideológico.

-------------------------------------------------------------------------------- Críticos estão corretos quando afirmam que os deputados migram de um partido a outro em busca de benefícios --------------------------------------------------------------------------------

Recentes pesquisas comprovam que deputados fiéis e infiéis apóiam, da mesma maneira, a agenda do partido ao qual estejam filiados. Eles obtiveram notas parecidas nos quesitos disciplina partidária (votos de deputados que seguem o encaminhamento do seu líder) e coesão partidária (respostas que, nas entrevistas, foram concordantes com o posicionamento do seu partido sobre um conjunto de temas). Os valores desses indicadores estiveram quase sempre acima de 80 pontos, numa escala de 0 a 100. Cerca de dois terços das mudanças de partido ocorreu dentro de um determinado bloco: esquerda, centro ou direita. De cada dez migrantes, apenas um rompeu drasticamente essa barreira, transitando de partidos esquerdistas para os direitistas ou vice-versa. Nesses casos, os infiéis quebraram o contrato firmado com seus eleitores, na medida em que marcaram, no partido novo, uma posição política diferente daquela sinalizada. Há registros de que deputados migrantes têm chances de reeleição menores que as dos não-migrantes, um sinal de que o eleitorado tende a perceber e a rejeitar esse tipo de comportamento oportunista. Em contraste, a maioria dos desertores sai incólume das urnas, sobretudo quando transita entre partidos que partilham uma agenda e participam de uma coalizão no Congresso.

Esse padrão de infidelidade partidária no Brasil é diferente daquele observado nos Estados Unidos. Ainda que a câmara baixa brasileira e a norte-americana tenham em comum um legislação permissiva e organizações partidárias frágeis comparadas ao modelo europeu, a infidelidade na House of Representatives é raríssima. Desde a terceira formação do sistema partidário norte-americano, iniciada em 1879 e dominada pelo Partido Republicano e pelo Partido Democrata, menos de cem deputados trocaram de partido enquanto exerciam seu mandato. Em média, dois deputados abandonam sua legenda a cada legislatura, numa câmara constituída por 435 membros. Mesmo sendo raras, essas deserções desfazem o acordo estabelecido entre o representante e seus representados, pois republicanos e democratas defendem há mais de um século agendas que se opõem na arena governamental. Mudar de partido nesse contexto significa necessariamente abandonar idéias e eleitores. Por isso, os parlamentares alegam discordância com relação a temas importantes, como a participação do seu país em guerras ou ao papel do Estado na economia. Os emigrantes, além de se justificarem ao público, precisam apoiar as iniciativas do novo partido para confirmar que eles se converteram. Do contrário, eles são punidos pelos eleitores e correligionários do seu distrito e dificilmente se reelegem.

O caso norte-americano é um bom exemplo de que a infidelidade partidária pode ser controlada sem a adoção de regulamentos impositivos, como os que vigoraram no autoritarismo brasileiro. Para tanto, é necessário reduzir o número de legendas com representação, de forma que a passagem de uma a outra fosse percebida como uma anormalidade. Em curto prazo, os partidos podem aproveitar esse momento para depurar seus quadros de filiados, promovendo a saída daqueles que descumprem seu estatuto e incentivando a entrada daqueles que se comprometam com suas diretrizes. Eleitores também podem colaborar com esse processo, estando mais atentos aos políticos que viram a casaca.

Celso Roma é doutor em ciência política pela USP e especialista em estudos legislativos