Título: País usa barreira não-tarifária contra chineses
Autor: Landim, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 10/10/2006, Brasil, p. A3

O governo brasileiro está dificultando as importações da China e atrasando a entrada de alguns produtos no país. Para os importadores, trata-se de uma barreira não-tarifária, que descumpre os tratados internacionais. Preocupadas com os prejuízos, as empresas recorrem à Justiça para liberar os produtos. Conforme os relatos ouvidos pelo Valor, os setores afetados são óculos, escovas de cabelo, brinquedos e pedivela de bicicleta - quase todos alvos de investigação de dumping.

Para endurecer a fiscalização e aumentar a burocracia, o governo passou a exigir licenças não-automáticas de importação nesses casos. O instrumento é legal e permitido pelas regras da Organização Mundial de Comércio (OMC), mas, segundo os importadores, vem sendo utilizado de maneira indevida. As empresas afirmam que a Secretaria de Comércio Exterior (Secex), que gastava menos de uma semana para liberar as licenças, passou a demorar mais de um mês desde o início de setembro. A Argentina também utiliza licenças não-automática de importação para calçados e lava-roupas do Brasil, o que gera forte protestos dos empresários brasileiros.

Segundo a assessoria de imprensa do ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), ao qual a Secex está subordinada, o governo está cumprindo rigorosamente a lei, que permite que os pedidos sejam analisados em até 60 dias. O órgão informa que a demora maior que a usual para a liberação das licenças é causada pelos "indícios de descaminhos e subfaturamento nas importações".

As empresas argumentam que a morosidade do governo contraria o acordo sobre procedimentos para o licenciamento de importações da OMC. Segundo o acordo, as licenças devem ser liberadas em até 30 dias, salvo em casos excepcionais nos quais o prazo aumenta para 60 dias. Além disso, o Brasil informou à OMC que utilizaria licenças não-automáticas de importação apenas para armas, produtos que coloquem em risco à saúde humana ou animal, causem dano ao meio ambiente, ou estejam submetidos à cotas de importação.

Alguns importadores decidiram recorrer à Justiça. É o caso da Fortuna Comércio e Franquias, dona da marca de óculos Chilli Beans, que faz sucesso com o público jovem. Quatro lotes de produtos da empresa, cerca de 100 mil pares, estão parados no aeroporto de Miami por falta de licenças de importação. A solicitação para o primeiro lote foi entregue ao governo no dia 31 de agosto. De acordo com o advogado Adriano Boni de Souza, da Noronha Advogados, que representa a Chilli Beans, a existência da empresa está ameaçada. Dependente 100% de importação para abastecer a 161 franquias espalhadas pelo país, a companhia argumenta que só possui estoques para atender à demanda até meados deste mês.

A empresa sustenta que "não é mera coincidência" que a morosidade na concessão das licenças e abertura do processo de dumping ocorreram ao mesmo tempo. "O governo não pode antecipar os procedimento legais de defesa comercial e utilizar indevidamente mecanismos burocráticos para restringir o comércio", diz Souza. A Chilli Beans conseguiu uma liminar da Justiça que reduz para 30 dias o prazo para a Secex expedir as licenças. O ministério informa que não recebeu uma comunicação oficial da Justiça sobre o assunto.

As fabricantes de escovas de cabelos Proarte, Bellis e Florence avaliam se também vão recorrer à Justiça ou se continuam tentando liberar os produtos pela via da negociação. A Bellis importa as escovas Prada, e a Florence é dona da marca Marco Boni. "Em algum momento, essa situação gerará problemas de redução de estoques e corte de fornecimento", diz a advogada Ana Caetano de Veirano, do escritório Veirano Advogados, que representa os importadores de escovas. Representantes do setor de pedivelas de bicicleta (peça utilizada no pedal) relatam que seus produtos ficaram parados nos portos por cerca de um mês e meio, mas foram liberados. As montadoras de bicicletas não pretendem entrar na Justiça e preferem a via da negociação, diz uma fonte.

No setor de brinquedos, a morosidade na liberação de licenças de importação começou em meados do ano, quando as salvaguardas que protegeram o setor por mais de dez anos foram extintas. Fontes ligadas ao setor relatam prejuízo com veiculação de propagandas que tiveram que ser adiadas por falta de produto no ponto-de-venda. Nesse setor, nenhuma ação foi iniciada na Justiça. Fabricantes e importadores estão no meio de uma negociação sobre as cotas para a importação de brinquedos, que devem ser determinadas em função de um acordo selado entre os setores privados de China e Brasil.

Apesar de sua pequena relevância econômica, esses setores estão no centro de uma intensa disputa entre Brasil e China que se arrasta por quase dois anos. Em setembro de 2004, o Brasil prometeu reconhecer a China como economia de mercado. O novo status dificultava a abertura de protestos de dumping contra os chineses, o que gerou forte protesto do setor privado. Liderada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), os empresários pressionaram o governo para regulamentar as salvaguardas contra a China. Dessa vez, a reação foi de Pequim, que considera o mecanismo discriminatório e se recusa a aceitá-lo. Depois de várias reuniões, o Brasil transformou os processos de salvaguarda em dumping. Agora os importadores reclamam de morosidade na entrada dos produtos. A polêmica parece longe de acabar.