Título: Crise abre confronto entre Madri e regiões
Autor: Gardner , David
Fonte: Valor Econômico, 22/08/2012, Especial, p. A16

O governo espanhol, sitiado sob fogo cruzado na linha de frente da batalha em torno do euro, parece estar abrindo uma segunda frente: usar a crise como justificativa pragmática e fachada política para reverter um sistema altamente descentralizado de governos regionais que o Partido Popular, atualmente no poder, ideologicamente detesta.

O PP, de centro-direita, que ganhou força em novembro passado, quer não apenas reduzir o tamanho do Estado, como também voltar a centralizá-lo. O governo de Mariano Rajoy vem insinuando isso e está pressionando os governos regionais, muitos dos quais necessitam ajuda de Madrid para pagar seus funcionários e refinanciar suas dívidas.

"Fazemos parte do Estado, mas somos tratados como súditos e não como parceiros", queixou-se Andreu Mas-Colell, tesoureiro do governo nacionalista da Catalunha, ao Financial Times, após uma atritada reunião com Cristóbal Montoro, ministro das Finanças espanhol, que, segundo Andreu, ameaçou impor um controle centralizado sobre os governos regionais que não cumprirem as novas rígidas metas orçamentárias.

Há muita coisa em jogo aqui. A fermentação do confronto entre o centro e as 17 regiões é mais do que uma trama secundária em meio ao drama maior do euro. Se mal encaminhados, os desdobramentos poderão solapar o acordo constitucional que converteu a Espanha de ditadura de Francisco Franco numa democracia vibrante e intensificar as exigências de independência basca e catalã que as autonomias regionais supostamente deveriam evitar.

"Estamos construindo os pilares desse novo sistema há 30 anos", diz Carlos Aguirre, que comanda a economia socialista e as finanças do governo basco. "Antes, não havia problema em trocar algumas telhas na cobertura, mas ninguém ousava mexer nas fundações. O receio, agora, é que todo mundo queira reexaminar as fundações."

Mas arquitetura da devolução de poder às regiões foi falha desde o início. A democracia emergente enfrentava o problema de atender às demandas históricas dos bascos e dos catalães, que governaram a si próprios durante a Segunda República derrotada por Franco na guerra civil de 1936 a 1939, mas cujo sentimento de nacionalidade remonta a séculos. Para a direita nacionalista espanhola, era anátema ceder às demandas dos separatistas, com suas línguas e cultura próprias, esmagados por Franco. Para a esquerda jacobina, era um espetáculo secundário. O compromisso, acordado na Constituição de 1978, envolveu oferecer condições ostensivamente semelhantes a todos. Cada região poderia tornar-se "autônoma", para disfarçar a devolução dos direitos às "nacionalidades históricas" - um eufemismo para o incendiário termo "nação", para a qual só pode haver a Espanha una e indissolúvel.

A autonomia de bascos e catalães rapidamente se firmou e outras regiões com características singulares, como a Galícia, com sua própria língua, ou a Andaluzia com sua peculiar cultura, adquiriram a fisionomia de autogoverno. Porém muitas regiões viram-se com governos que nunca tinham pedido, que frequentemente tornaram-se feudos de barões locais e veículos de financiamento a partidos. A irresponsabilidade financeira de algumas regiões, impiedosamente expostas pela crise atual, tem levado alguns a concluir que a devolução da autonomia regional é um luxo dispendioso.

"A descentralização foi criada para resolver os problemas basco e catalão, mas esses problemas estão efetivamente se agravando, e o custo de tudo isso não é mais viável", diz um alto funcionário de um governo regional do PP. Mas ele admite que haveria "resistência radical a qualquer retrocesso".

"A ideia de uma volta à centralização é simplesmente inviável na Catalunha", diz um ex-assessor de José Luis Rodríguez Zapatero, primeiro-ministro socialista até o ano passado. "A atmosfera lá mudou totalmente. Soberania [separação] está sendo ativamente discutida - e se há uma coisa que poderia torná-la realidade seria uma tentativa de arrebatar os poderes de volta."

A discussão fiscal sobre a devolução (de poderes) é confusa e muitas vezes tendenciosa. São muitas vezes omitidos, nessas polêmicas, o custo dos serviços e a base tributária inadequada para bancá-los. As regiões têm de gastar muito, já que serviços públicos como saúde, educação e cuidados com idosos recaem sobre elas. Receitas para custear isso eram abundantes, originadas do recolhimento de impostos sobre a propriedade durante o boom de construção civil pré-crise, na qual muitas regiões, assim como o governo central, ficaram viciadas. Mas essa dependência tornou-se estrutural após a redução no imposto de renda implementada no anteriores governos de José María Aznar, do PP, e também dos socialistas, de Zapatero.

O confronto entre o centro e as 17 regiões é mais do que uma trama secundária em meio ao drama maior do euro

Agora, em meio a um sufocante aperto orçamentário, todas as regiões, exceto o País Basco e a província adjacente de Navarra, que cobra seus próprios impostos, são dependentes de verbas centrais, que, segundo autoridades regionais, Madri usa não só para impor austeridade, mas também para minar o autogoverno.

Montoro deixou claro que os governos em busca de ajuda para refinanciar suas dívidas beneficiando-se do novo fundo de liquidez de € 18 bilhões destinado às regiões terão de aceitar as condições rigorosas do tipo que a UE impõe a membros socorridos da zona do euro, como a Grécia ou Portugal. O ministro das Finanças já chegou a ouvir uma anedota sobre o envio dos "Homens de Preto" de Madrid, em vez de pessoal de Bruxelas e Frankfurt, para administrar os governos regionais. Além disso, Madrid está reservando o espaço para respirar que Bruxelas recentemente concedeu à Espanha para reduzir seu déficit orçamentário inteiramente para gastos do governo central, impondo metas ainda mais rigorosas às regiões.

"O governo acha que pode fazer conosco o que a UE está fazendo com os governos centrais", diz Mas-Colell. Heribert Padrol, consultor do premiê catalão Artur Mas para planos de maior autonomia fiscal, diz: "Para mim, eles têm efetivamente uma agenda de recentralização, e reproduzir internamente o mecanismo da UE lhes confere alguma legitimidade".

Embora ninguém conteste a existência de superposições e duplicações onerosas no modelo descentralizador, o governo mostra poucos sinais de distinguir a qualidade dos gastos. Todos os partidos são culpados de clientelismo, mas o PP, mais do que a maioria. O PP hoje comanda 11 dos governos regionais que devem metade do total de € 140 bilhões em dívidas das regiões e têm custos com folhas de pagamento públicas muito superiores à média. As previsões de custos salariais bascos e catalães deverão representar, respectivamente, 20% e 24% do Orçamento deste ano, ao passo que em Valencia ou na Galícia, administradas pelo PP deverão ficar em torno de 38%. "A única agência de empregos na Espanha, no momento, é o Partido Popular", comenta um funcionário do governo regional do PP.

De fato, quando os críticos atacam a extravagância regional, é para o governo de Valência, com suas práticas "coronelistas" e barrocos escândalos de corrupção, que eles inevitavelmente apontam. Não por acaso, um banco de Valência ligado um governo regional está no cerne do Bankia, banco nacionalizado no auge da crise bancária. Valência foi exemplar, entre os casos de bancos regionais de poupança, ou "cajas", que inflaram a bolha imobiliária. O banco tem 23% do estoque de 800 mil casas novas não vendidas não Espanha. "A equação "cajas" mais administrações regionais era uma maneira de imprimir dinheiro", diz José Ignacio Torreblanca, do Conselho Europeu de Relações Exteriores.

No entanto, o debate sobre o futuro da devolução está ficando muito mais áspero do que as avaliações sobre seus resultados e deverá acirrar o embate entre nacionalistas espanhóis, de um lado, e nacionalistas bascos e catalães em suas campanhas por maior independência, de outro. Os nacionalistas espanhóis acreditam que o atual sistema federal sem fronteiras nítidas tornará a Espanha um estado residual com um governo central fraco, uma espécie de Suíça hispânica. Os nacionalistas bascos e catalães tendem a crer que a Espanha está adiando seu futuro.

Embora os bascos tenham sido geralmente vistos como a maior ameaça à unidade devido à agora finda campanha violenta dos separatistas do ETA, é o debate sobre a soberania catalã que se radicalizou. A inflexão ocorreu dois anos atrás, quando o Tribunal Constitucional em Madri diluiu as reformas que visavam ampliar a autonomia aprovada pelos parlamentos tanto catalão como espanhol.

O governo catalão quer o direito de arrecadar os próprios impostos, como os bascos - algo de que abdicou há 30 anos. Aquela geração de nacionalistas catalães ironizou os bascos por ressuscitarem direitos quase feudais para dar suporte à autonomia fiscal. "Eles diziam que era uma relíquia", recorda Iñigo Urkullu, presidente do partido basco nacionalista predominante. "Mas, 30 anos depois, eles perceberam tratar-se de uma ferramenta vital. Graças a isso fomos capazes de reconstruir nossa economia e estabelecer o autogoverno."

O governo catalão quer o direito de arrecadar os próprios impostos, como os bascos. Algo de que abdicou há 30 anos

A economia basca é industrialmente diversificada e focada em exportações, apoiada em bancos saudáveis e pesquisa avançada e investimentos em desenvolvimento. Em virtude da autonomia fiscal, o governo manteve endividamento e déficit orçamentário sob controle, assegurou um bom sistema de ensino e serviços públicos, mas transfere cerca de oito vezes menos per capita do que a Catalunha para os cofres do fisco espanhol.

A Catalunha, por outro lado, com uma economia do dimensão da portuguesa, tem a maior carga de endividamento entre todas as regiões - € 41,8 bilhões, dos quais € 13,5 bilhões vencerão neste ano. Embora demande autonomia fiscal, o governo catalão anunciou no mês passado que buscará socorro fiscal de Madri.

Autoridades e economistas catalães dizem que estariam solventes se não transferissem € 18 bilhões ao ano, cerca de 9% da produção econômica, para Madri - um montante que, queixam-se, extrapola as demandas de transferência equitativa para as regiões mais pobres. "Não podemos manter uma situação onde somos a quinta [região] em renda per capita, mas acabamos ficando em nona posição após a repartição", diz Padrol. Ele salienta que o clamor por independência propagou-se da franja política para "os engravatados", porque "ou você controla os próprios recursos ou, como país, está morto".

"O governo catalão quer ser uma região com os atributos de um Estado, mas o que queremos não se encaixa mais na Espanha", diz Salvador Garcia-Ruiz, um economista separatista. Crente de que Madri não só rejeitará atribuir novas competências fiscais à Catalunha, como aproveitará a atual crise para retomar os poderes governamentais já conquistados pela região, Garcia-Ruiz acredita que os catalães acabarão votando por separar-se da Espanha.

Pesquisas de opinião sugerem que ele pode estar certo, mas a corrente predominante de nacionalistas, tanto catalães como bascos, há muito alternam entusiasmo e indiferença em relação à independência. O governo Rajoy parece determinado a testar essa ambiguidade pragmática até o limite e desnudar a essência da determinação nacionalista. "A Catalunha não desaparecerá", diz Mas-Colell. "Nós temos nossa história, nossa língua e nossa cultura. Nós sobrevivemos a Franco e, assim, sobreviveremos também a isso".