Título: Prova para 3,3 milhões
Autor: Kleber, Leandro;
Fonte: Correio Braziliense, 08/11/2010, Brasil, p. 7

Com uma abstenção de 28%, o Enem será utilizado por 24 universidades federais. Candidatos elogiam o conteúdo e a redação

Ontem, os mais de 3,3 milhões de candidatos que compareceram aos 16 mil locais de prova, em 1,8 mil municípios, tiveram cinco horas e meia ¿ das 13h às 18h30 ¿ para responderem a 90 questões de matemática, linguagens (inglês ou espanhol) e códigos, além da redação com o tema ¿Trabalho na construção da dignidade humana¿. A prova vai ser utilizada por pelo menos 24 universidades federais como forma única de ingresso em 2011. O Sistema de Seleção Unificado (Sisu) será adotado por 38 instituições de ensino superior, no preenchimento total e parcial das vagas. Entre os inscritos, 528 mil buscam apenas a certificação do ensino médio. Para obtê-la, os candidatos devem ter no mínimo 18 anos, alcançar uma pontuação mínima estipulada na prova e na redação.

A média de abstenção registrada no fim de semana de prova foi de 28%. Bahia (33,6%), Roraima (33,07%), Distrito Federal (32,54%) e São Paulo (32,27%) foram os Estados com o maior número de faltas. A estimativa feita pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) é de que 3,3 milhões dos 4,6 milhões de inscritos fizeram os exames. A entidade considera o índice de abstenção ¿dentro da normalidade¿.

A estudante Letícia Caixeta Mesquita, de 18 anos, foi uma das poucas candidatas que perderam o horário no segundo dia de prova. ¿Meu ônibus não passou e tive de ir à rodoviária. Lá, perdi o horário. Gostaria de ter feito a prova porque estudei muito e estava confiante, mas não deu. Agora é estudar para os próximos¿, lamenta. Quem fez a prova ontem elogiou o conteúdo. ¿Gostei da prova nos dois dias. Acho que o exame aborda conhecimentos gerais e exibe menos `decoreba¿ e fórmulas. Com esse formato é melhor. Também achei a redação tranquila ¿, avalia a estudante do 3º ano do Ensino Médio Lohanna Lima Pires, apesar de destacar que a UnB, local onde pretende cursar odontologia, não tem vagas por meio do Enem.

Já João Paulo Dayer Borges revela que não estudou como deveria para o Enem, à espera de ser contemplado pelo Financiamento Estudantil (Fies). ¿Na verdade, eu gostaria de ser do Exército e o cargo que quero exige nível superior. Mas, infelizmente, acho que minha nota não vai ser boa¿, diz. A nota obtida no exame pode ser utilizada para fornecer bolsas de estudos parciais ou integrais, por meio do ProUni, em instituiçoes privadas de ensino, a candidatos que atendam a exigências socioeconômicas. A redação é corrigida por dois revisores de forma independente, sem que um conheça a nota atribuída pelo outro. A nota final corresponde à média do total atribuído pelos dois. Desde 2009, o Enem ganhou importância e passou a ser usado como vestibular para dezenas de universidades federais. Apesar de a edição de 2009 ter contabilizado 4,1 milhões de inscritos, apenas 2,6 milhões de estudantes fizeram as provas.

Familiares Enquanto os candidatos realizavam a prova, parentes esperavam do lado de fora. ¿Como minha filha não sabe andar muito bem aqui no Plano Pilto, vim com ela. E hoje (domingo) ela me disse que vai demorar mais que ontem. Vou esperar¿, contou Lindalva Loiola, que tomou um ônibus com a filha no Riacho Fundo. ¿Vim do Park Way com minha irmã porque depois da prova vamos ao shopping¿, disse Hilário Júlio, de 14 anos, que aguardava em frente a um colégio particular da Asa Sul. Muitos comerciantes que trabalham na entrada dos locais de prova reclamaram que as vendas neste ano foram fracas. Juliana Moura, que comercializa balas, chocolates, canetas e guarda-chuvas, afirma que foi o pior fim de semana de trabalho do ano. ¿Não me lembro de ter vendido tão pouco como agora. Não sei o que aconteceu. Só sei que em dia de concurso ou vestibular lucramos muito mais¿, diz.

Memória Série de trapalhadas Além do erro de impressão na folha de respostas e duplicação de questões da prova do último sábado, o Enem já apresentou outros problemas:

Julho de 2009 ¿ site congestionado Quando foi anunciado que o Enem seria utilizado também para ingresso em universidades públicas, o sistema de inscrição apresentou problemas devido ao grande número de acessos. O prazo final para o cadastro acabou sendo prorrogado por três dias.

Agosto de 2009 ¿ Justiça determina reabertura de inscrições A Justiça Federal determinou que as inscrições do Enem fossem reabertas. O pedido foi feito pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro sob argumentação de que o Inep não poderia ter exigido o CPF dos candidatos no ato da inscrição. Segundo o MPF, estudantes menores de idade não são obrigados a possuir o documento.

Outubro de 2009 ¿ provas furtadas Dias antes da realização do exame em outubro, as provas foram furtadas da gráfica responsável pela impressão dos cadernos. Com isso, o Enem teve de ser adiado e, depois do episódio, diversas instituições desistiram de utilizar o resultado do Enem no processo seletivo.

Dezembro de 2009 ¿ gabarito errado Com índice de abstenção de 38%, a prova foi marcada por confusões em vários estados. Além disso, o gabarito da prova foi divulgado de forma embaralhada e trocada. O Inep identificou o erro e foi obrigado a publicar novo gabarito.

Janeiro de 2010 ¿ problemas no Sisu O Sisu (Sistema de Seleção Unificada), que usa as notas do Enem para selecionar estudantes para universidades federais, travou no primeiro dia de inscrições. Além disso, houve casos de estudantes que perderam vagas em instituições após mudanças na lista de espera do sistema. O MEC afirmou que os casos foram resolvidos.

Agosto de 2010 ¿ vazamento de dados pessoais dos candidatos Em agosto deste ano, quando ocorreu uma falha no site do Inep que permitiu acesso livre aos dados pessoais de 12 milhões de inscritos nas últimas três edições da prova, era possível ter acesso a nome, RG, CPF, data de nascimento, nome da mãe e até as notas dos estudantes. Após a constatação do erro, o órgão tirou a página com as informações do ar.

Palavra do especialista Uma boa ideia mal executada » Daniel Cara

A nova concepção do Exame Nacional do Ensino Médio, esse Enem que pretende se tornar a principal porta de entrada para a universidade pública no Brasil, já é soberana e já conseguiu ser aceita ¿ tanto por parte dos alunos quanto das instituições. Mas isso não vai se concretizar se erros de gestão graves como os que ocorreram na primeira edição do exame já no novo modelo, em 2009, e ocorreram novamente, na atual edição, persistirem.

Para o fortalecimento dessa concepção vitoriosa, esses erros não podem voltar a ocorrer de forma alguma. É preciso salientar que os problemas verificados em 2009, como o vazamento de provas, são maiores que os problemas ocorridos nesta edição. Independentemente da diferença entre eles, considero ambos graves. Tais falhas, se repetidas em edições posteriores, podem derrubar a ideia de um Enem forte, baseado numa prova de raciocínio e unificada.

É importante que nada ameace a nova concepção do Enem, porque ele representa, da forma como foi idealizado, uma boa notícia para os jovens. Facilita a construção do projeto de vida do estudante, a ideia do ingresso na universidade. O Enem também é uma estratégia interessante, não a única nem a mais importante, de fortalecer o ensino médio no Brasil ¿ uma etapa considerada desinteressante por grande parte dos alunos em que a evasão atinge níveis recordes.

Por tudo isso, é preciso que o governo federal se empenhe em um planejamento correto para evitar qualquer erro como os que ocorreram até aqui na aplicação do Enem. Além de provocar frustração de alunos e falta de confiança por parte das instituições, as sucessivas falhas colocam em risco esse novo Enem que pode, se bem executado, representar inúmeros benefícios a alunos, universidades e à educação brasileira de uma forma mais ampla.

* Coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, bacharel em ciências sociais e mestre em ciência política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP)