Título: Eleição dá ânimo aos Pacos e assusta as Gladys no Equador
Autor: Uchoa, Rodrigo
Fonte: Valor Econômico, 13/10/2006, Internacional, p. A10

Gladys Eljuri, cerca de 60 anos, faz parte da "fina flor" da aristocracia equatoriana: de uma das famílias mais tradicionais de Cuenca, terceira maior cidade do país, é muito rica e enfronhada na política. Já Kleber Patrício Suarez, 36, conhecido como Paco, é a outra face do país: de família pobre, viveu nove anos ilegalmente em Londres, mandando dinheiro para os parentes que ficaram e fazendo seu pé-de-meia. No começo da semana, ambos estiveram à mesma mesa de jantar e puderam dar a um grupo de jornalistas uma visão privilegiada da altamente estratificada sociedade do Equador. Isso ajuda a explicar a instabilidade e tensão política no país, que tem neste domingo eleição presidencial.

A senhora Gladys, como é chamada pelas dezenas de empregados domésticos que a servem, diz ter 16 casas em Cuenca. Fala de seu apartamento em Miami com tanto carinho como se fosse um filho caçula. Mas essas propriedades são só uma ponta visível do grupo Eljuri, fundado por Juan Eljuri, pai de Gladys, e que inclui concessionárias Mercedes, grandes centros comerciais, distribuidoras de marcas como Cartier e Montblanc, fazendas etc. "Deus me fez rica para ajudar os pobres. Trabalho incansavelmente, pois meu maior amor é este país. Quero transformá-lo", diz, enquanto mandar servir aos convidados mais uma garrafa de champanhe Laurent-Perrier.

Tudo na casa da sra. Gladys parece parte de um jogo cênico montado para impressionar os convivas. O terreno está encravado ao pé de uma reserva natural, longe de qualquer vizinho. Os jardins estão repletos de bustos romanos. No interior da residência, se sobressaem os "tromp l'oeil" e quadros retratando pessoas vestidas como no século XVIII - só que com rostos de familiares de Gladys, todos de traços europeus, descendentes de libaneses que se misturaram com a elite de origem espanhola. É como se fosse uma versão toda kitsch da mostra de decoração Casa Cor.

Um detalhe: apesar do fausto, os empregados domésticos não ganham em média mais do que US$ 150, abaixo da média equatoriana para as pessoas com emprego formal. E trabalham constantemente pela madrugada afora, servindo os freqüentes convidados da patroa.

A política é uma das paixões da sra. Gladys. Até o ano passado, ela própria foi ministra do Turismo do Equador. Seu marido, Antonio Álvarez, é candidato a deputado pelo Partido Social Cristão (conservador). "Eu não faço política, trabalho pelo país", corrige-me Gladys Eljuri, recusando-se a dizer em quem votará para presidente na eleição geral de domingo.

Paco, por sua vez, dirige o micro-ônibus de turismo que leva o grupo formado por mim, duas russas, dois americanos, um suíço e um polonês, jornalistas convidados para conhecer grandes empresas do país. Feições de índio, Paco fez na década de 90 o caminho escolhido hoje por cerca de 2,5 milhões dos 13 milhões de equatorianos: trabalhar num subemprego qualquer no exterior. No seu caso, o destino foi Londres. Hoje, ir para a Espanha ou para os EUA está bem mais na moda.

Esses imigrantes, assim como Paco em sua temporada no exterior, acabaram se tornando a segunda maior fonte de divisas externas do país, só perdendo para o petróleo. Enquanto o setor petroleiro responde por 55% dos US$ 9 bilhões exportados pelo Equador, os imigrantes mandam para casa cerca de US$ 1,5 bilhão anualmente. Esse total ultrapassa até as exportações de banana, segundo item de exportação equatoriano.

Por causa dessa ajuda de fora, pode-se ver ao redor de Cuenca um boom de construção. Casas novas, tetos coloridos, alguns azuis, outros vermelhos, mas no geral todas muito parecidas, como se os imigrantes tivessem mandado o mesmo projeto junto com o dinheiro.

"É claro que isso movimenta a economia toda. Hoje é possível comprar os materiais de construção lá no país onde você está e eles são entregues aqui", diz Paco. Mas o otimismo dá uma freada brusca quando ele começa a falar de política: "São todos ladrões. Só fazem as coisas de olho no que vão ganhar. Por isso precisamos de alguém ousado, como Rafael Correa, para chacoalhar o país."

Paco se refere ao jovem (43 anos) candidato a presidente, que lidera as pesquisas. Quase desconhecido até dois anos atrás, Correa hoje povoa o imaginário de muitos equatorianos como o revolucionário que "pode mudar as coisas, como Hugo Chávez", diz Paco. Nos muros de todo o país vê-se o seu rosto pintado em uma pose que ficou famosa: a de Che Guevara, no retrato feito por Alberto Korda. O olhar distante, heróico, duro, mas sem perder a ternura.

A campanha desse ex-ministro da Economia (ficou poucos meses no cargo, após a deposição de Lucio Gutierrez, no ano passado) cala fundo em gente como Paco: ataca a corrupção generalizada que boa parte da população sente estar entranhada no Congresso e no governo, e ataca os EUA, o velho inimigo "gringo" que estaria só interessado das riquezas naturais do país.

Em muros próximos aos pintados com a imagem de Correa/Guevara nota-se o trocadilho crítico ao Tratado de Livre Comércio (TLC) que o Equador negocia com os EUA e que o candidato esquerdista promete jogar no lixo: Tempos de Lágrimas para os Camponeses.

Essa promessa de Correa faz Paco se rejubilar. "Vamos mostrar que não somos capachos", diz. Mas também dá arrepios na sra. Gladys. "Estão a ponto de quebrar muita gente por causa dessa irresponsabilidade".

Jorge Peñafiel, superintendente da produtora de rosas Agrinag, na Província de Cotopaxi, perto de Quito, é um dos que concordam com a ex-ministra do Turismo. "Muita gente vai fechar as portas se não assinarmos o TLC. Enfrentando impostos de importação nos EUA, nossa competitividade vai por água abaixo."

A Agrinag produz cerca de 30 mil rosas por dia, que saem diretamente para o mercado externo (80% para os EUA). "Nós vamos sobreviver, mas muita gente será prejudicada e não conseguirá competir com os colombianos, por exemplo, que já têm seu TLC", completa.

Atualmente, os EUA compram 53% de todas as exportações equatorianas. São de longe o maior parceiro comercial do país, seguidos por Colômbia e Peru. O Brasil compra muito pouco dos equatorianos, mas é a origem de 6% das importações do país andino. Cerca de 22% das importações equatorianas vêm dos EUA, e 16% da Colômbia.

Mas há algo que une Paco, a senhora Gladys e a maioria dos candidatos a presidente, inclusive Correa: a dolarização da economia, que já dura seis anos.

"No início foi muito difícil, pois o custo de vida aumentou, mas os salários não. Entretanto agora estamos melhores", diz Paco.

O país vive uma estabilidade macroeconômica razoável, com a inflação perto dos 2% anuais, e o PIB, de US$ 33 bilhões, com previsão de crescer 4,5% neste ano.

"Com a previsibilidade econômica, nossos negócios podem florescer", diz Fernando Crespo, um dos principais produtores de cacau e de chocolate da cidade portuária de Guayaquil, a maior do país e "motor econômico" do Equador. Sua intenção, diz, é aumentar em 20% no ano que vem seus 70 mil pés de cacau.

O orgulho dos produtos agrícolas é evidente e se alimenta da retórica nacionalista da esquerda e da direita, uma versão andina do "em se plantando, tudo dá".

Chega a exageros. Para impressionar os jornalistas que recebeu, a sra. Gladys usou mais do que os vinhos e charutos do Free Shop. Mandou trazer produtos únicos da riqueza gastronômica do Equador, incomparáveis aos de países de "menos tradição cultural", como o Brasil, segundo ela. Os europeus e americanos se deliciaram. Infelizmente, para o único brasileiro presente, a rapadura servida não era assim uma novidade.

O jornalista viaja a convite da Corporação de Promoção de Exportações e Investimentos do Equador