Título: Políticas sociais no Brasil: a rara continuidade
Autor: Cruz, Marcio José Vargas da
Fonte: Valor Econômico, 13/10/2006, Opinião, p. A12

O professor Ricardo Abramovay, em 16 de agosto neste jornal, discutiu de forma oportuna o processo de aprimoramento do Pronaf, no artigo "Combate à pobreza: chegou a hora da qualidade". Ainda no tema de continuidade e ajustamento de políticas públicas, é interessante observar nesta eleição o tratamento dado às políticas sociais. Parece haver certa convergência para o aprimoramento de alguns dos mecanismos em vigor, indicando um raro processo de continuidade.

Não vamos discutir neste curto espaço a possibilidade, ao que parece remota, de um projeto de desenvolvimento diferente para o país. Queremos apenas considerar que, a permanecer a visão corrente, temos a rara oportunidade de avaliar a continuidade de programas sociais em vigência. Dentre eles, um dos mais visíveis é o Bolsa Família.

A história do Bolsa Família nos remete a alguns programas de transferência de renda, com destaque para o Bolsa Escola, implementado no governo Fernando Henrique e fruto da experiência iniciada pelo então governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque. O governo do presidente Lula trouxe um discurso de prioridade ao combate à fome e implementou o programa Fome Zero. Diante de problemas na execução deste programa, decidiu-se incorporá-lo à estrutura já estabelecida de políticas de transferência de renda, buscando integrar todas as iniciativas num único cadastro - o do Bolsa Família.

Um resultado interessante é que os dois candidatos que disputam o segundo turno das eleições presidenciais (Lula e Alckmin), além de Cristovam Buarque, que já saiu do páreo, se vêem identificados com o Bolsa Família, seja por ações individuais ou dos partidos que representam, e o tratam como algo que deve ser mantido e melhorado. E diz a racionalidade política que a paternidade de programas é algo importante de se registrar. Logo, a manutenção de um mecanismo de transferência de renda aos menos favorecidos, sob a forma monetária, parece ser consenso entre as propostas apresentadas como meio de auxiliar na provisão de condições mínimas de subsistência.

Esta atitude por parte dos candidatos pode parecer óbvia. Não o seria, entretanto, se recuperássemos um histórico mais longo de políticas sociais no Brasil. Grande parte dos programas sociais voltados à transferência de alguma forma de renda se caracterizavam pela dispersão, não necessariamente priorizavam os mais pobres e tinham vida relativamente curta.

Existe um debate amplo, academicamente fundamentado, que sugere ser a transferência de renda sob a forma monetária à população mais pobre um mecanismo mais eficiente do que a transferência de cupons de alimentação, como era a proposta inicial do Fome Zero e de outras alternativas já experimentadas. Se tal sugestão continua persuasiva, cabe ao próximo governante melhorar, por um lado, os mecanismos de incentivo e de contra-partida (como a freqüência das crianças nas aulas e a exigência de exames pré-natais para gestantes) e, por outro, os processos de monitoramento e avaliação do programa, visando minimizar fraudes e disponibilizar mais informações sobre os beneficiários. Isto permitirá que análises críticas mais consistentes possam ser feitas com o intuito de flexibilizar algumas limitações do Bolsa Família. É possível e desejável que se use a organização existente também para ampliar a capacidade decisória das famílias beneficiadas através, por exemplo, de programas de instrução e capacitação integrados a ações de incentivo à atividade produtiva local, e assim induzir mudanças estruturais. Isto traz a preocupação em criar mecanismos de estímulo à não dependência no longo prazo do beneficiado para com esta transferência.

-------------------------------------------------------------------------------- Próximo desafio do Bolsa Família é o de integrar-se a ações que estimulem mudanças estruturais nas famílias beneficiadas --------------------------------------------------------------------------------

Quisera dentro de 20 anos retomarmos este assunto, analisando o avanço de um mesmo programa de transferência de renda às pessoas desfavorecidas do Brasil. Seria interessante verificar que um mecanismo de assistência temporária à parcela mais pobre da população sobreviveu sem ruptura a várias transições políticas e conseguiu servir a mudanças estruturais positivas. Claro, a simples continuidade de um determinado programa não garante estes avanços. Entretanto, eles serão muito mais difíceis de se alcançar diante de rupturas sistemáticas.

Não é raro no Brasil que se interrompa um determinado programa em função de uma racionalidade política, seja para assegurar a paternidade de uma tentativa de solução do problema ou para indicar uma ruptura com o antecessor. Muitas vezes as "novas" propostas em grande parte replicam o que já estava em andamento. Há custos sociais nessa prática. No caso de políticas sociais com amplo acesso, os custos de transição de uma mudança podem ser significativos. Por exemplo, gasta-se tempo e recursos na consolidação de uma rede de instituições confiáveis para que uma família pobre de uma região periférica tenha acesso aos benefícios propostos. De um lado, a família precisa entender e se adaptar ao novo sistema, bem como à nova forma de acompanhamento. De outro lado, o programa precisa se preparar para colher e manusear informações que ajudem no acompanhamento da família beneficiada e na melhoria das ações, especialmente as que propiciem maior independência e que levem à inelegibilidade do beneficiado.

Nesta perspectiva, o próximo desafio do Bolsa Família é o de integrar-se a ações que estimulem mudanças estruturais na situação das famílias beneficiadas. Isto a princípio permitiria uma transição mais suave para a diminuição de sua importância - se o que se quer é um programa de assistência inicial ou transitória que convirja para soluções estruturantes. Afinal, um objetivo maior deve ser a implosão do programa por queda substantiva no número de pessoas elegíveis. Trata-se de um mecanismo importante, mas complementar à questão fundamental para romper com a miséria ainda existente no Brasil, que é o crescimento econômico qualificado - aquele que absorve a mão-de-obra desempregada e diminui as desigualdades de renda. E aí um tema central a se discutir passa a ser a condução da política econômica. Essa discussão não nos cabe aqui, mas não se pode deixar de notar que taxas de crescimento da renda per capita iguais às das últimas duas décadas implicariam em fortes restrições à melhoria do bem estar da população. Esperamos que neste caso não haja continuidade.

Marcio José Vargas da Cruz é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná - marciocruz@ufpr.br.

Huáscar Fialho Pessali é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná - pessali@ufpr.br.