Título: Este homem quer conter as lágrimas do Kilimanjaro
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 13/10/2006, Especial, p. A14

O homem sobe numa espécie de grua e vai apontando a evolução ascendente e veloz do enorme gráfico que aparece na tela ao lado dele. A cena é impactante pelo efeito visual, pelo que mostra e por quem é o protagonista. Está no documentário "Uma Verdade Inconveniente", de Davis Guggenheim, o nome por trás do thriller "24 Horas". Mas é muito mais aflitiva do que qualquer capítulo do seriado policial.

Mostra a evolução geométrica das emissões de dióxido de carbono, o principal culpado pelo aquecimento da temperatura no planeta. O protagonista não é ator de Hollywood, é Albert Arnold Gore Jr., o Al Gore, vice-presidente dos EUA na gestão Clinton. E o filme, que prevê um futuro apocalíptico para a Terra se a humanidade continuar no caminho em que está, não é ficção, é uma possibilidade bem real.

São 90 minutos perturbadores. Uma sequência, por exemplo, mostra o pico nevado do Kilimanjaro, na África, em 1970 e uma foto feita em 2005, onde a neve é apenas uma pequena mancha no topo da montanha. "Em 10 anos, os cientistas prevêem que 'As Neves do Kilimanjaro' podem não existir mais", diz Gore, fazendo referência ao sucesso do cinema de 1952, com Gregory Peck. É a única pitada poética do documentário.

O que se segue é uma sucessão de imagens da redução dos glaciares no Alasca, no Peru, na Patagônia. As fotografias migram dos Andes para os Alpes, mas a mensagem é a mesma - geleiras derretendo. Depois vêm a sucessão de furacões e cenas reais do desespero das vítimas. O mundo animal comparece com elefantes sendo refrescados nos zoológicos europeus, como aconteceu no verão de 2005, e ursos polares morrendo afogados porque não encontram icebergs pela frente. Finalmente, se a emissão de poluentes continuar no ritmo em que está, há uma simulação horripilante de enchentes em San Francisco, na Holanda, em Xangai, em Calcutá. O cenário de "Waterland", o filme de Kevin Costner onde todo mundo vive encharcado, é fichinha. No caso do documentário de Gore, se a vida imitar a arte, não será um clichê. Será o fim.

Mesmo quem não é muito sensível a apelos ambientais sai atordoado da exibição do documentário que vem tendo boa receptividade e bilheteria nos EUA e na Europa, foi um hit no festival de Sundance, apresentado em Cannes e estréia no Brasil em 3 de novembro. É que quem comanda o enredo aflitivo não é um ecologista hiponga de poncho e chinelão. "Eu sou Al Gore. Eu era o 'futuro presidente dos Estados Unidos'", apresenta-se o homem que por oito anos foi vice-presidente em um dos períodos mais prósperos da economia norte-americana. O resto da história é conhecida: nas eleições de 2000, Gore obteve a maioria dos votos, mas, no final de uma eleição polêmica, quem se elegeu foi George W. Bush.

A partir daí, ele se recolheu à fazenda da família no interior do Tennessee e voltou a se dedicar ao tema ambiental que o fascina há 40 anos - o efeito estufa. "Eu estava sem emprego e aquela, certamente, não foi uma fase fácil", escreve Gore no livro homônimo do filme e que, desde julho, está no topo da lista dos mais vendidos do "The New York Times" e será lançado nos próximos dias no Brasil. Juntou material científico sobre a relação entre as emissões de CO2 causadas por carros, indústrias e queimas de florestas, e o aumento da temperatura na Terra e partiu em missão pelos EUA fazendo uma apresentação didática sobre o assunto, cheia de imagens e gráficos. Em 2005, surgiu a idéia de transformar aquilo em cinema. "Se eu queria atingir o maior número possível de pessoas em pouco tempo, e não apenas continuar falando para uma centena de pessoas por noite, um filme era o jeito de fazer isso", escreve Gore.

No final do documentário, Gore indica sites e pede às pessoas que modifiquem seus hábitos de vida, que poupem energia, que usem mais o transporte público, que andem de bicicleta, que reciclem, que rezem. "Como diz aquele provérbio africano, reze e vá fazendo." Os últimos minutos de "Uma Verdade Inconveniente" procuram mostrar como a crise planetária pode ser resolvida. "Foi o filme mais impressionante que já vi na vida", disse o ex-secretário de Meio Ambiente Paulo Nogueira-Neto, ao final de uma pré-estréia em São Paulo. "É o nosso Titanic que está afundando e as pessoas não percebem. Temos que acordar, não podemos continuar dormindo."

Nos últimos meses, Gore, 58 anos, capitaneou a onda verde que ressurgiu nos EUA. Rodou o mundo, deu entrevistas, foi capa de revistas internacionais. Sua agenda corrida parece a de um homem em campanha política - na próxima terça-feira ele estará em São Paulo para fazer uma palestra sobre as mudanças climáticas e seu impacto na economia mundial, e entregar o Prêmio Eco da Câmara Americana do Comércio, a Amcham, no auditório do Ibirapuera. Chega e parte no mesmo dia. É rotina de candidato, mas ele tem negado ter qualquer ambição à Casa Branca. "No começo pensei que poderia concorrer de novo, mas nos últimos anos descobri que há outras formas de contribuir e que eu estou realmente gostando delas."

As atividades de Gore circundam os temas ambientais. Ele é um dos fundadores da Generation Investment Management, uma empresa com escritórios em Londres e Washington que procura conciliar a ótica ambiental a processos econômicos com plataforma sustentável, encorajando negócios lucrativos mas de pouco impacto ecológico. Também iniciou a Current TV, um canal de TV a cabo e satélite para jovens, em San Francisco, e integra o Conselho de Diretores da Apple. Há poucos dias, Gore, considerado um dos cardeais do Partido Democrata americano, concedeu esta entrevista ao Valor, por telefone, de Nova York:

Valor: Estes últimos tempos foram especiais para a luta ambiental na Califórnia, não foram? Recentemente, a Califórnia acionou seis das maiores montadoras do mundo pelos danos de bilhões de dólares que as emissões dos carros vêm causando e aumentando o aquecimento global...

Albert Arnold Gore Jr: Sim, o procurador-geral do Estado da Califórnia deu entrada a uma importante ação judicial. E duas semanas antes disso, os deputados democratas e o governador republicano [Arnold Schwarzenegger] somaram forças e aprovaram uma legislação que corta as emissões de CO² na Califórnia. São dois acontecimentos muito significativos.

Valor: É um bom começo, não é? Seria algo parecido aos processos contra a indústria do cigarro?

Gore: É, anos atrás um processo judicial similar contra as indústrias do tabaco iniciou uma mudança importante nos Estados Unidos. Foi quando fumar virou uma preocupação e foi assim que se salvaram muitas vidas.

Valor: Seu filme termina propondo às pessoas que mudem seu modo de vida. O senhor fez mudanças no seu próprio cotidiano?

Gore: Fiz. Comprei um carro híbrido e passei a usá-lo, substituindo aquele que eu estava dirigindo. Troquei todas as nossas lâmpadas por outras mais eficientes. No telhado de casa estou colocando placas de células fotovoltaicas. Além disso, minha família e eu decidimos, há uns dois anos, nos tornarmos aquilo que se chama "neutros em carbono". Compramos créditos para compensar as quantidades de poluição que não somos capazes de eliminar. Assim buscamos ter uma contribuição líquida zero em termos de poluentes.

Valor: Quando foi que o senhor entendeu que a crise climática se transformaria em uma emergência planetária?

Gore: Comecei a mergulhar neste tema há quase 40 anos, quando tive um professor, Roger Revelle, que foi o primeiro cientista a me introduzir à idéia do aquecimento global, aos efeitos das emissões de dióxido de carbono. Há trinta anos, quando fui eleito pela primeira vez para o Congresso dos Estados Unidos, organizei os primeiros debates parlamentares sobre aquecimento global. E então escrevi um livro ["Earth in the Balance"] e fiquei profundamente envolvido, com a idéia de desenvolver uma compreensão global da crise. Quando novas evidências se tornaram disponíveis, elas confirmaram meus piores temores de que a situação era ainda mais séria do que se imaginava há 40 anos. Agora os níveis chegaram a um ponto onde temos que cortar a poluição dramaticamente para reduzirmos o termostato global.

Valor: Neste processo o senhor viu algo que o assustou?

Gore: Sim, no mesmo ano que visitei o Brasil pela primeira vez, também vi o derretimento das calotas polares. Ou quando vi os efeitos do Katrina. E todos estes fenômenos foram previstos pelos cientistas como conseqüência do aquecimento global.

Valor: O filme diz que a humanidade tem uns dez anos até sentir, com ainda mais violência, os efeitos do aquecimento global. As atitudes individuais não são muito tímidas diante do que precisa ser feito?

Gore: Tenho me concentrado em mudar a mentalidade das pessoas, para que mais e mais gente mude sua cabeça e, assim, consigamos atravessar este ponto de desequilíbrio.

Valor: Há alguma chance de o Protocolo de Kyoto ser ratificado pelos Estados Unidos durante a administração Bush?

Gore: Provavelmente não. Mas eu acredito que existe uma chance de a administração Bush ser forçada a mudar sua postura quanto ao aquecimento global nos próximos dois anos. Acho que poderemos nos unir ao processo de negociação de um tratado de acompanhamento de Kyoto. Mas é claro que acho que nós deveríamos nos juntar ao Protocolo de Kyoto.

Valor: Mas o senhor acha que em mais dois anos isso irá acontecer?

-------------------------------------------------------------------------------- As novas evidências sobre as mudanças climáticas no mundo confirmaram meus piores temores" --------------------------------------------------------------------------------

Gore: Acho que é possível.

Valor: Os Estados Unidos são os maiores emissores de CO2 do mundo. Sem falar na postura do atual governo, o senhor não acha a atitude da sociedade norte-americana egoísta nesta questão?

Gore: Os Estados Unidos deveriam ter um papel de liderança em reduzir as emissões de CO2. Estou tentando convencer o meu país a se unir ao Protocolo de Kyoto e reduzir estas emissões.

Valor: Porque o senhor acredita que a questão da mudança climática não é política, mas é moral? Este é um ponto chave no seu filme.

Gore: Sim, sim, é um ponto fundamental. Trata-se de uma questão moral porque afeta a sobrevivência da civilização humana. Os políticos têm soluções que precisam ser criadas dentro do sistema político. Mas esta é, em última instância, uma questão moral. Porque o fracasso disso poderia significar o fim da civilização, e isso seria imoral. É eticamente errado que a geração atual seja tão egoísta a ponto de reduzir as perspectivas das nossas gerações futuras.

Valor: Repetindo suas palavras, o senhor disse que as empresas de petróleo e de carvão exercem influência demais nos Estados Unidos. Como o senhor acha que isso pode mudar?

Gore: A melhor maneira de reduzir esta influência é aumentar a consciência do cidadão comum sobre a natureza da crise. Na medida em que for crescendo a sensibilidade dos eleitores para estas questões, os grupos de pressão exercerão menos influência.

Valor: Mas é um processo lento.

Gore: Pode ser devagar, mas a mudança se torna veemente.

Valor: Como o senhor vê a política do governo brasileiro para a Amazônia? Acha que o desmatamento está sob controle?

Gore: Em primeiro lugar, isso é um assunto da competência do Brasil. Ninguém no resto do mundo vai tomar decisões pelo Brasil; o Brasil é que deve tomar estas decisões. E o que for que o Brasil decidir será o que irá acontecer com a Amazônia. Mas meu conselho, para os meus amigos no Brasil, seria que esforços crescentes deveriam ser feitos para proteger a integridade do ambiente na região. Os recursos genéticos que serão encontrados lá logo serão reconhecidos como mais valiosos que a madeira ou a agricultura, que de qualquer modo, por lá não é tão produtiva, em função do solo na Amazônia. Eu respeito e admiro os grandes esforços que estão sendo feitos para proteger a Amazônia e louvo aqueles que trabalham duro para isso. [Neste momento, Gore interrompe a entrevista] Estão me falando que tenho que ir para outro compromisso. Lamento. Você gostaria de fazer uma última pergunta?

Valor: Podem ser duas?

Gore: Ok.

Valor: A pergunta inevitável: o senhor vai se candidatar à presidência dos Estados Unidos em 2008?

Gore: Não tenho nenhum plano de concorrer à presidência em 2008.

Valor: O senhor acha que a sociedade americana está preparada para ter uma mulher como presidente?

Gore: Sim, acho que uma mulher poderia se eleger presidente nos Estados Unidos.

Valor: A próxima eleição norte-americana poderia ser disputada entre duas mulheres? Hillary Clinton e Condoleezza Rice?

Gore: Bom, acho que é cedo demais para prever quem serão os candidatos de ambos os partidos. As eleições de novembro agora estão no foco da nossa atenção.

Valor: O que vocês vão fazer com o Iraque? Como os Estados Unidos vão sair do Iraque? Qual é a proposta do Partido Democrático para sair do Iraque?

Gore: Eu me opus à guerra desde o início. Acho que temos que trazer as nossas tropas para casa assim que possível, mas devemos ser cuidadosos. Temos que fazer isso de uma maneira que não deixe as coisas ainda piores.

Valor: Isso é possível?

Gore: Espero que sim. Desculpe, agora tenho realmente que ir.