Título: Se todos fossem iguais a você
Autor: Cardoso, Tom
Fonte: Valor Econômico, 05/01/2007, Eu & Fim de semana, p. 12

Tom Jobim (1927-1994) dizia que o brasileiro precisava merecer a bossa nova. Talvez seja necessário acrescentar a esta frase que o país também precisava - e precisa - merecer seu principal compositor. No dia 25 de janeiro, quando se celebram os 80 anos do nascimento de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, surge uma boa oportunidade de reparar as injustas críticas que o músico recebeu em sua terra natal. Afinal, o Brasil foi ingrato a Tom Jobim em seus 67 anos de vida. Neste ano, serão muitas as homenagens e já são muitos os lançamentos programados. Todos tentam reverter a imagem de músico "vendido aos americanos" e realçam a tese de que Tom Jobim foi um expoente da música nacional. Nelson Pereira dos Santos lidera as comemorações com o documentário "O Homem Iluminado", inspirado na biografia de Helena Jobim, irmã de Tom, com a ajuda de Miúcha. Os dois já haviam trabalhados juntos na cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda, em 2003.

Durante muito tempo, implicou-se até com o nome artístico de Tom Jobim no Brasil, dizendo-se que era americano demais. Os críticos eram os mesmos que reclamavam de Johnny Alf e Dick Farney. Pobres de espírito. "Quando eu morrer, enterrem meu coração no Arpoador", pediu Tom. "Quero morrer em português. Como é que vou dizer para o médico gringo que estou com uma dor no peito que responde na cacunda?", reclamou o compositor, que morreu, por ironia, num hospital de Nova York, 8 em dezembro de 1994.

O país pelo qual Tom não morria de paixão, o adotou. Foi nos EUA que ele gravou o primeiro disco como cantor, "The Wonderful World of Antônio Carlos Jobim", em 1965. Tinha 38 anos. Enquanto gravava com Frank Sinatra, enquanto Quincy Jones e Dizzy Gillespie o reverenciavam, enquanto a bossa nova mudava a forma de fazer música no mundo, no Brasil sobravam críticas a seu trabalho. "No Brasil, sucesso é ofensa pessoal", concluiu Tom. O jornalista José Ramos Tinhorão cismava até com seu mocassim sem meia, uma prova concreta, segundo ele, da "americanização" do autor de "Matita Perê".

Em sua última entrevista, um mês antes da morte, concedida ao repórter Walter de Silva, da revista "Qualis", Tom se queixou: "Se você fizer um anúncio do chope da Brahma, a imprensa brasileira toda cai de pau. E depois a imprensa do Rio começa a falar mal, depois a de São Paulo começa a falar mal, depois o Rio Grande do Sul, depois o Brasil inteiro. São acordes, todos. Tem um sujeito aqui que escreve que o Tom e o Vinícius fazendo o anúncio da Brahma são duas jararacas menstruadas. É, e eu não sei por quê. Em primeiro lugar eu acho que jararaca não menstrua..."

Tom se irritava com as críticas, mas acabava tirando tudo de letra. Respondia à altura. Achou, por exemplo, uma forma bem divertida de se vingar de José Ramos Tinhorão, aquele mesmo que implicara com o seu mocassim sem meia. Toda noite, um pouco antes de dormir, fazia questão de fazer o último xixi no tinhorão, planta famosa pela beleza de suas grandes folhas, que ele cuidava com muito zelo e carinho no jardim de sua casa. Dormia com os passarinhos.

"Ele tinha mania de implicar com jornalistas, apesar de não precisar. Sua obra está acima de qualquer suspeita", diz o escritor e jornalista Sérgio Cabral, autor de "Antônio Carlos Jobim, uma Biografia" (Editora Lumiar). "E é bom que se diga que o Brasil não é o único país a não reconhecer seus grandes artistas. Li uma pesquisa de uma universidade americana afirmando que 80% dos jovens de lá não sabem quem foi Duke Ellington e Louis Armstrong", compara Cabral. Mas o Brasil deve estar entre os primeiros do ranking da anti-homenagem. É na principal cidade do país, cantada com afeto por Tom em "Te Amo, São Paulo", que está localizada a mais sinistra obra em tributo a um compositor, a Passagem Subterrânea Tom Jobim, um lúgubre buraco de poucos metros construído em 1995, pelo então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, na avenida Prestes Maia, sob avenida Senador Queiroz - mas ele também deu nome à Universidade Livre de Música, ligada à Secretaria de Estado da Cultura, o Centro de Estudos Musicais Tom Jobim.

"Aquilo [a passagem subterrânea] é horroroso, de um mau gosto impressionante", lamenta Helena Jobim. "Ele recebeu poucas homenagens em vida. Certamente a que ele mais gostou foi a da Mangueira, que dedicou a ele o samba-enredo ('Se Todos Fossem Iguais a Você') de 1992. Ele era um compositor sofisticado, mas, ao mesmo tempo, popular. Queria que sua música fosse apreciada por todos", diz Helena. "Sou um mestiço de popular com erudito. Sou um eruditinho", confessou Tom.

Quatro anos mais nova do que Tom, Helena acompanhou de perto a luta do irmão para sobreviver como músico. Casado aos 22 anos com Tereza, com quem teria um filho, Paulo, Tom teve de largar a boa vida de esportista em Ipanema e o primeiro ano na faculdade de arquitetura para sustentar a família como pianista em boates de Copacabana. Tinha apenas uma carta na manga: as aulas de música na adolescência com o alemão Hans Joachim Koellreuter, o introdutor do dodecafonismo no Brasil, com que aprendera os segredos do piano. "Ele varava madrugadas inteiras, ganhava pouco e chegava exausto em casa. Era uma vida sem glamour algum. Mas ali foi a sua escola", lembra Helena.

Em boates como Tudo Azul, Alcazar, Vogue e Farolito, Tom era obrigado a tocar de tudo, de bolero a canções francesas, de valsa a rumba. "Não tinha moleza, trabalhávamos como operários", conta Billy Blanco, parceiro de Tom em seu primeiro sucesso, "Tereza da Praia", gravado por Dick Farney e Lúcio Alves em 1954. O paraense Billy, ao contrário, completou a faculdade de arquitetura. "Cheguei ao Rio, vindo de São Paulo, para terminar meus estudos. Pelas minhas contas, seríamos colegas de classe na Universidade do Brasil, mas ele saiu logo no primeiro ano, disposto a seguir a carreira de pianista. Bendita opção."

Aos 83 anos, Billy lembra do primeiro dia em que encontrou o futuro parceiro, em meados de 1950, tocando num bar de madrugada, em frente ao Posto 5, na avenida Atlântica, no Rio. "Eu era vizinho dele, morava na rua Barão da Torre, em Ipanema, e na época já havia um bochicho no bairro: um rapaz começara a ganhar nome como pianista nas noites de Copacabana. Como meu interesse por música era grande, fui lá conferir", conta. "Tom Jobim não só me recebeu de um jeito muito cordial, como me ensinou a escrever música. Viramos amigos. Eu tinha de pagar para colocar minhas músicas na pauta, mas depois das aulas do Tom nunca mais precisei. Para mim, ele é o maior compositor dos últimos tempos, acima de Cole Porter e George Gershwin."

Após "Tereza da Praia", a dupla compôs "Sinfonia do Rio de Janeiro". Nascia o compositor Tom Jobim. Tempos depois, Tom conheceria Vinícius de Moraes, com quem assinaria as canções da peça "Orfeu da Conceição". O resto é história. Elizeth Cardoso gravaria "Chega de Saudade" no emblemático disco "Canção do Amor demais", com violão de João Gilberto, plantando a semente da bossa nova, que conquistaria o mundo anos depois, principalmente os americanos. O primeiro disco com Sinatra ("Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim"), de 1967, vendeu tanto que, naquele ano, foi apenas superado em vendas por "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", dos Beatles. Tom não perdeu o bom humor: "Aí, não vale, eles são quatro".

É pena que os americanos pensem que Tom Jobim é apenas um compositor de bossa nova. Como escreveu Ruy Castro, no verbete do compositor no livro "Ela É Carioca" (Companhia das Letras), "Tom foi também uma espécie de umbigo, ligado a tudo de rico que a música popular brasileira gerou no século. Em sua obra há ecos de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Sinhô, Ary Barroso e Custódio Mesquita".

Para o escritor e musicólogo Zuza Homem de Mello, o que mais impressiona na obra de Tom é a regularidade. "Ele nunca compôs música ruim. Isso em qualquer gênero, em sambas, em valsas, em choros. Destacou-se também como letrista. Escrevia esporadicamente, chegava ao nível de um Chico Buarque. É, seguramente, o maior compositor brasileiro de todos os tempos."

Os amigos contam que Tom nunca teve muita noção de sua genialidade. Era um homem de hábitos simples, boa-praça. Alberico Campana, proprietário do restaurante Plataforma, no Rio, adotado nos anos 1980 pelo compositor como uma espécie de segunda casa, lembra do dia em que o pianista Sérgio Mendes, na época fazendo, como Tom, estrondoso sucesso nos Estados Unidos, chegou para beber no restaurante. Estava em outra mesa e acenou: "Tom, vem cá". Quando Tom ia se levantar, Campana conta que segurou em seu braço e disse: "Não senhor, você não vai lá. Ele é que tem de vir aqui. Você é o Tom Jobim, ele é o Sérgio Mendes. Quem é Sérgio Mendes?" Segundo Campana, Tom o olhou espantado e não se levantou.

Amigo de todos, Tom só não tinha paciência com os chatos. "O chato não suporta ser olhado nos olhos. Por isso, não vou a boates, a lugares escuros, porque é ali que o chato se reproduz", dizia. No Plataforma, sua mesa ficava propositalmente num ponto estratégico. Ele podia avistar, sem ser notado, quem entrava no restaurante. Se fosse um velho amigo, ele assoviava a Campana para pegar mais uma cadeira. Se fosse algum chato qualquer, era levado imediatamente para o lado oposto. Na mesa de Tom Jobim eram bem-vindos João Ubaldo Ribeiro, José Lewgoy, Chico Buarque, Antônio Pedro, Miguel Farias, Paulo Mendes Campos, Sérgio Cabral e Tarso de Castro.

Mesmo assim, de vez em quando um chato escapava. Uma mulher, filha de um pastor americano, encantou-se com a presença de Tom no Plataforma. Passou o dia de pé, conversando sobre amenidades com o compositor, que permaneceu sentado, fingindo interesse, comendo sua carne com seis dentes de alho. "Ele apenas colocou alguns guardanapos em cima da comida, porque a mulher falava sem parar e às vezes babava, como todo chato baba", lembra Campana. No dia seguinte, a filha do pastor apareceu novamente e grudou no artista, que, educadamente, apenas voltou a colocar os guardanapos sobre o prato. No terceiro dia, conta Campana, Tom não agüentou. Assim que a "chata" postou-se novamente de pé a seu lado, ele se levantou, pôs o prato nas mãos da moça e foi embora. A mulher, aflita, perguntou: "Onde vai, maestro?"