Título: Trincheiras anticontágio
Autor: Neri, Márcia
Fonte: Correio Braziliense, 08/11/2010, Saúde, p. 19

Não há solução milagrosa para evitar que as bactérias super-resistentes apareçam e avancem. Hoje, controle sobre o uso indiscriminado de antibióticos

Tão simples quanto as próprias bactérias ¿ seres formados por uma única célula ¿ são as medidas destinadas a prevenir o contágio e as infecções provocadas por esses micro-organismos. Quando observados e realizados com critério, procedimentos básicos, como a higienização das mãos dos profissionais que lidam com os enfermos, a aplicação de técnicas de desinfecção e esterilização, além do isolamento dos pacientes infectados, podem evitar contaminações e situações emergenciais, como a que vem ocorrendo em hospitais brasileiros nos últimos meses. No entanto, o uso indiscriminado de antibióticos e o descuido das normas de segurança ¿ muitas vezes agravado pelo excesso de pacientes ¿ estão tornando recorrentes os surtos de infecções bacterianas de alta resistência no país.

Dúvidas e medo ainda pairam sobre a população, mas infectologistas explicam que a maioria das bactérias super-resistentes são inofensivas aos indivíduos saudáveis. A KPC é uma delas. Esse parasita oportunista é um upgrade da Klebisiella pneumoniae, bactéria que passou a produzir a carbapenemase, enzima que destrói a capacidade de ação dos antibióticos devido ao uso desmedido da droga. ¿Embora responsáveis por mortes em diversas partes do mundo, a KPC e quase todas as bactérias multirresistentes ainda são uma ameaça restrita a pessoas internadas e com imunidade comprometida¿, diz o infectologista Luiz Fernando Camargo, do Hospital Albert Einstein.

Países desenvolvidos também padecem com a dificuldade para evitar as superbactérias. O médico e professor de doenças infecciosas da Universidade do Texas (EUA) Edward Septimus considera que tais micro-organismos são um problema de saúde pública, já que existem pouquíssimos novos antibióticos em desenvolvimento. ¿Eles representam um desafio para a medicina. Estão cada dia mais rápidos em relação à disposição da indústria farmacêutica em desenvolver drogas capazes de combatê-los¿, pondera o infectologista.

Para ele, a informação e a educação ainda são as melhores armas nessa guerra. Septimus reporta que, nos Estados Unidos, os surtos ocorrem, principalmente, no nordeste do país. ¿Os hospitais cumprem protocolos e contam com equipes que fiscalizam o cumprimento de normas de higienização. Buscamos agir rapidamente, mas se a situação foge ao controle, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças é acionado¿, explica. O CDC (sigla em inglês) é a agência de saúde pública dos EUA.

Ações universais As condutas para prevenir a contaminação de bactérias multirresistentes são universais. Nos quatro cantos do planeta, o controle das drogas antibióticas, a higienização das mãos, a cultura de material em pacientes internados e medicados há muito tempo, a aplicação de produtos químicos específicos para a assepsia rotineira no chão, em paredes, camas e instrumentos usados nos pacientes são medidas normativas. ¿Não há regras extraordinárias seguidas em países desenvolvidos. Se o básico for cumprido, o risco de contaminação é minimizado. Restrição antibiótica e higienização das mãos são essenciais. Quando ocorre uma infecção por bactéria super-resistente deve-se isolar o paciente. Temos poucas opções terapêuticas contra elas. Então, é importante enfrentar a questão e não esconder o fato¿, assegura o infectologista Carlos Magno Fortaleza, professor de moléstias infecciosas e parasitárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu.

A infraestrutura das áreas onde ficam os pacientes de risco também é um fator que merece atenção. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomenda a instalação de pias para a higienização das mãos a cada quatro leitos. Nem todos os hospitais obedecem a essa determinação. ¿Muitos profissionais se deparam com falta de luvas, aventais e leitos de isolamento, facilidades básicas que não faltam para os médicos e enfermeiros de países desenvolvidos, que ainda contam com a possibilidade de fechamento das unidades para que sejam totalmente desinfectadas¿, aponta a infectologista Silvia Figueiredo Costa, professora do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Ao analisarem as razões que desencadeiam os surtos, tanto os infectologistas brasileiros quanto os americanos entoam uma espécie de coro: são resultado do cuidado inapropriado aos pacientes. O raciocínio é simples. Qualquer pessoa está sujeita a sofrer um acidente ou a ser vítima de males que demandam internação hospitalar. Como as diretrizes conhecidas entre os profissionais da saúde de todo o mundo não são seguidas à risca, esses micro-organismos oportunistas encontram nos hospitais um verdadeiro paraíso à disposição.

Estudos conduzidos na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil comprovam que a higienização das mãos, por exemplo, é raramente observada adequadamente nas áreas de risco dos hospitais. ¿É um cuidado básico, simples, obrigatório antes de qualquer contato com o paciente, mas sua adesão varia de 25% a 85%. Em unidades superlotadas, médicos e enfermeiros cuidam de 10, 20 pacientes. E assim, é praticamente impossível cumprir normas¿, explica a infectologista da USP.

Sofrimento familiar A aposentada Raimunda Gomes Alves, 80 anos, está internada desde agosto. Ela deu entrada no Hospital Prontonorte devido a um acidente vascular cerebral (AVC). Uma semana depois da internação, pegou pneumonia e precisou ser submetida a uma traqueostomia. Os filhos de Raimunda contam que a infecção bacteriana veio em seguida e os infectologistas demoraram para identificar o agente infeccioso. ¿Foram prescritos diversos antibióticos, que não debelaram o problema. Um médico confirmou para a família que minha mãe foi contaminada pela KPC. Outros três negaram e o hospital não nos dá nenhum posicionamento. Ela, que sempre foi uma mulher forte, está isolada e seu estado de saúde é dramático¿, desabafa a filha da paciente Eliete Rodrigues. Em nota ao Correio, a direção do Hospital Prontonorte nega que Raimunda esteja infectada pela KPC. Segundo o comunicado, a paciente está isolada devido a uma infecção provocada pela Klebisiella pneumoniae, encontrada no tubo digestivo e responsável por complicações urinárias, pneumonia e outras infecções ¿ uma espécie de pré-KPC, antes da última mutação.

A dona de casa Algenora Trindade, 41 anos, acompanha o marido, também isolado ¿ mas em um hospital público do DF. No caso dele, não restam dúvidas: os exames detectaram a KPC. Edmar Pereira da Trindade foi internado no Hospital de Base do Distrito Federal em setembro para fazer uma drenagem no cérebro por conta de um tumor. ¿Lá, ele pegou a bactéria e recebeu alta ainda debilitado. Depois de 15 dias em casa, tivemos que interná-lo em outro local, porque veio a febre e a falta de ar. Exames estão sendo feitos para verificar se a KPC ainda resiste. A melhora é lenta¿, lamenta a esposa.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que mais de 50% das prescrições de antibióticos no mundo são inadequadas. Na Europa e nos Estados Unidos, não se compra esse tipo de droga sem prescrição médica. ¿Entre americanos e europeus, a contaminação por bactérias super-resistentes é imediatamente notificada às autoridades de saúde. Somente agora, com o surto da KPC, nossos hospitais passaram a ser obrigados a registrar os casos. A maioria dos estados nem sequer conta com comitês estaduais de controle de infecção hospitalar¿, lamenta a infectologista da USP.

Para saber mais Começam as mudanças Estima-se que, no Brasil, o comércio de antibióticos movimentou R$ 1,6 bilhão em 2009. A partir de 28 de novembro, os antibióticos vendidos nas drogarias do país só poderão ser entregues ao consumidor mediante apresentação de receita de controle especial em duas vias. A primeira delas ficará retida no estabelecimento farmacêutico e a segunda deverá ser devolvida ao paciente, com carimbo para comprovar o atendimento. A determinação da Anvisa foi publicada no Diário Oficial da União de 28 de outubro. A medida também determina que as embalagens e bulas terão que incluir a frase: ¿Venda sob prescrição médica ¿ só pode ser vendido com retenção da receita¿.

As empresas terão seis meses para fazer as adequações de rotulagem e as receitas passam a ter validade de 10 dias, devido às especificidades dos mecanismos de ação dos antimicrobianos. Todas as prescrições deverão, ainda, ser registradas no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC). A Anvisa também determinou que, a partir de 2011, hospitais, clínicas e consultórios devem ter preparação alcoólica para a fricção antisséptica das mãos dos profissionais de saúde que lidam com o paciente. Nos hospitais, o produto deverá estar à beira dos leitos, para evitar que o profissional precise sair do local para higienizar as mãos.