Título: O dilema de um presidente
Autor: Rachman, Gideon
Fonte: Valor Econômico, 05/01/2007, Opinião, p. A9

Quando Saddam Hussein foi capturado, a pistola que o ex-presidente iraquiano trazia junto a si foi enviada a Washington. Agora, é conservada pelo presidente George W. Bush em seu escritório na Casa Branca. A execução de Saddam, no entanto, não é suficiente para selar a vitória de Bush no Iraque. Ao contrário, essa história de dois presidentes parece inclinada a terminar com a morte de um protagonista e a derrota do outro.

Nos próximos dias, Bush anunciará os resultados de uma revisão da política dos EUA no Iraque. Ele terá de decidir entre duas terríveis alternativas. Aceitar tacitamente que os americanos fracassaram e começar a preparar a retirada das tropas ou tentar um último esforço desesperado para vencer e enviar uma nova leva de soldados americanos ao Iraque.

O pretenso "decididor" encontra problemas para decidir-se. O anúncio da nova política para o Iraque vem sendo reiteradamente postergado. Todas os indícios, contudo, mostram que o presidente se aproxima de uma decisão: a equivocada. Optará pelo envio de mais tropas.

Teimosia e orgulho, sem dúvida, pesarão na escolha de Bush. Há, porém, argumentos legítimos apresentáveis em defesa de um derradeiro esforço militar americano. Criar um Iraque estável e democrático continua sendo um objetivo nobre, também em grande sintonia com os interesses ocidentais. Milhares de iraquianos e americanos morreram nessa tentativa. O fim de 2006 foi marcado pela notícia de que a contagem de soldados americanos mortos no Iraque chegou a 3 mil. Será que todas essas vidas devem ser contabilizadas como custo de uma política fracassada?

Uma retirada americana rápida demais poderia ter conseqüências regionais terríveis - mais derramamento de sangue, mais refugiados, uma guerra regional. Há algo de evasivo no relatório suprapartidário Baker-Hamilton sobre o Iraque que parece preparar o terreno para uma retirada, ao condicionar a continuidade do apoio americano à obtenção de objetivos políticos quase impossíveis.

Um esforço militar renovado dos EUA seria a escolha certa, estratégica e moralmente, se houvesse alguma chance de ser bem-sucedida. Infelizmente, uma leitura atenta do que Bush parece inclinado a propor não traz muita base para otimismo.

Os sinais mais recentes são de que Bush estuda enviar mais 17 mil a 25 mil soldados para incrementar os cerca de 140 mil combatentes americanos já mobilizados no Iraque. O principal objetivo seria tentar melhorar a segurança em Bagdá, uma forma de tirar o Iraque de uma guerra civil.

É difícil, contudo, encontrar algum especialista militar independente que acredite que o envio de um contingente adicional de amplitude tão limitada possa dar resultado. Talvez os expoentes mais proeminentes favoráveis ao aumento das tropas sejam Fred Kagan, acadêmico do instituto suprapartidário de estudos políticos American Enterprise Institute, e Jack Keane, um general da reserva. Em artigo, Kagan e Keane sustentam que, para ser eficaz, "o aumento de tropas deveria ser amplo e duradouro", o que definem como um acréscimo de "pelo menos 30 mil soldados de combate, durante cerca de 18 meses".

-------------------------------------------------------------------------------- Os Estados Unidos devem tentar minimizar mais perdas de vida iraquianas e aliadas e impedir que o caos transborde para um conflito regional mais amplo --------------------------------------------------------------------------------

Porém, mesmo 30 mil soldados - embora pareça mais do que Bush provavelmente venha a oferecer - têm uma forte conotação de concessão política. Recentemente, em novembro passado, Kagan argumentava que embora "o topo das estimativas" sugerisse a necessidade de outros 80 mil soldados americanos para montar uma operação eficaz de contra-insurgência no Iraque, "é muito provável que um pico de 50 mil soldados seja suficiente para estabilizar a capital". No fim das contas, parece improvável que Bush banque até mesmo metade desse número.

"Falcões" exasperados argumentam que o presidente precisa fazer "seja lá o que for necessário" para prevalecer. Mas tal cobrança ignora as realidades políticas tanto no Iraque como nos EUA. O sectarismo manifesto durante a execução de Saddam evidenciou o fato de que o Iraque é agora palco de uma guerra civil. Deveria um contingente adicional de tropas americanas concentrar-se em combater os insurgentes sunitas ou as milícias xiitas - ou enfrentarão ambos os grupos simultaneamente? Até mesmo mais 80 mil soldados americanos terão dificuldades para impor ordem em meio a tal conflito. De todo modo, Bush simplesmente não dispõe dos recursos militares nem do poder político para injetar esse número adicional de soldados no conflito.

O general Peter Schoomaker, chefe de Estado Maior do Exército dos EUA, advertiu recentemente o Congresso de que as exigências às quais está sendo submetido o Exército americano, formado inteiramente por voluntários, "irão levá-lo ao colapso", a menos que o presidente possa convocar mais reservistas. Mas os 522 mil componentes da Guarda Nacional e reservistas não podem ser convocados para servir mais de um turno não voluntário numa guerra no exterior. Segundo a última contagem, havia apenas cerca de 90 mil militares ainda convocáveis. Se Bush vier a modificar essas regras e começar a convocar membros da Guarda Nacional para mais de um turno de serviço no Iraque, ele, com razão, poderá ser acusado de ilegalidade.

Estando o controle do Congresso agora com os democratas, havendo muitos republicanos importantes abertamente céticos quanto ao envio de mais soldados ao Iraque, com uma eleição presidencial no horizonte e com as pesquisas de opinião mostrando uma forte cobrança pública pela retirada das tropas, qualquer traço de recrutamento impositivo equivaleria a envenenamento político.

Bush enredou-se nas contradições retóricas no coração da guerra no Iraque. Pois enquanto quis projetar-se como um novo Churchill, envolvido em uma nova luta pela civilização, Bush nunca ousou sugerir que cidadãos comuns, civis americanos, poderiam ter de contribuir com seu sacrifício para a vitória. Um presidente verdadeiramente inspirador poderia ter condições de persuadir seus compatriotas a "suportar qualquer ônus" para a vitória no Iraque. Mas Bush não pode vir agora com esse discurso. Sua credibilidade em relação ao Iraque foi liqüidada, e há muito tempo.

Se uma vitória no Iraque é impossível, mais cedo ou mais tarde os EUA terão de pensar em como administrar sua derrota. Dois principais objetivos se apresentam. Em primeiro lugar, tentar minimizar mais perdas de vida iraquianas e aliadas. Segundo, impedir que o caos no Iraque transborde para um conflito regional mais amplo.

Pelo menos esse segundo objetivo deverá ser factível. Pois embora a Turquia e países árabes "moderados", como a Arábia Saudita, tenham interesses e lealdades em jogo no Iraque, também têm enorme interesse em estabilidade regional. Irã e Síria poderão assumir uma postura mais agressiva. Mas terão de ser cautelosos.

Pois mesmo se os EUA perderem no Iraque, continuarão dispondo de enormes recursos militares e econômicos capazes de intimidar inimigos e recompensar amigos no Oriente Médio. A execução de Saddam Hussein pelo menos ressalta o fato de que continua sendo perigoso ser inimigo dos americanos.