Título: Receita investiga cartões de premiação
Autor: Salgado, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 16/10/2006, Brasil, p. A3

A estratégia parecia perfeita: um eficiente plano de marketing, motivação aos funcionários e um vantajoso planejamento tributário. A opção, porém, pode se transformar em grande dor de cabeça. Mais de 1,4 mil empresas que pagam ou já pagaram bônus e remunerações a seus trabalhadores por meio de um cartão de premiação são alvos de investigação da Receita Federal e do Ministério da Previdência por suspeitas de sonegação de impostos e contribuições previdenciárias.

Desde o ano passado e, de forma mais intensa a partir de agosto deste ano, esses dois órgãos e mais o Ministério Público Federal estão fiscalizando empresas que utilizam esse tipo de serviço, em uma operação denominada "Premium Card". Este é o nome do cartão de premiação oferecido pela maior empresa de marketing de incentivo da América Latina, a Incentive House, do Grupo Accor.

Na operação da Previdência serão visitadas 429 empresas em 18 Estados. Essas serão as primeiras a serem fiscalizadas, pois ainda existem 976 contribuintes suspeitos de sonegação. As mais de 400 empresas dessa primeira fase da operação representam nada menos do que 90% do valor devido à Previdência, segundo Alexandre Corrêa Lisbôa, coordenador-geral em auditoria especial do Ministério da Previdência Social.

Um levantamento do Ministério da Previdência e do Ministério Público Federal concluiu que desde 2002 houve uma movimentação financeira de R$ 650 milhões por meio desses cartões, o que significa que não foram pagos R$ 230 milhões em contribuições previdenciárias, segundo o governo.

Os cartões são recarregáveis e pré-pagos, têm um crédito a ser utilizado. A maioria dos que estão no mercado permite compras da mesma forma que um débito automático, mediante a digitação de uma senha, e são aceitos em centenas de estabelecimentos. Outros também permitem saques. Eles podem ter bandeiras como Visa e Redeshop ou das próprias agências de marketing. Antes existiam cartões pós-pagos, como os de crédito, mas estão em desuso.

Essa questão tem provocado muita polêmica. De um lado estão as autoridades que avaliam que qualquer remuneração paga a um empregado, fruto de seu trabalho, deve ser tributada. Na outra ponta, estão as agências de marketing de incentivo - fornecedoras dos serviços dos cartões - e as empresas que os utilizam para remunerar funcionários. Para elas, esses valores são gastos com marketing, já que o objetivo é incentivar e premiar alguns empregados e, assim, promover melhores resultados. E justamente por serem vistos como investimentos os valores são contabilizados como despesas.

No entendimento da Receita e da Previdência não importa se a empresa está pagando parte do salário de seus funcionários por meio desse cartão ou se está fornecendo apenas um bônus ou incentivo a alguns deles. Para esses órgãos, esse valor precisa ser contabilizado na folha de pagamento e está sujeito à tributação.

A princípio, não é porque uma empresa utiliza esse cartão que está sonegando impostos e contribuições. Ela pode fazer uso do cartão e pagar os tributos. Porém, segundo Lisbôa, todos os contribuintes visitados pela Previdência até agora não recolhiam as contribuições previdenciárias.

No caso da Receita, o Estado de São Paulo tem concentrado boa parte das ações. Com a intensificação das fiscalizações foi possível reduzir a utilização dos cartões. Os gastos das empresas com esses serviços passou de R$ 94 milhões em 2004 para R$ 5,3 milhões no ano passado. Entre os anos de 2002 e 2005, a média de gastos ficou em R$ 57,8 milhões e a soma deles chega a R$ 231,3 milhões.

O comando das operações no Estado está, desde 2005, com a delegada de fiscalização Roseli Abe. "As fiscalizações têm ocorrido em grandes grupos econômicos de renome. E, como muitas empresas estão sendo visitadas, várias já suspenderam o uso do cartão antes mesmo de chegarmos lá", diz. Se, além de dever impostos a empresa contabilizar os pagamentos de remuneração por esse meio como despesas de marketing, para que sejam dedutíveis, poderá ser acusada também de fraude. As ações correm sobre segredo de Justiça.

"A nossa avaliação é a de que há um desvio de foco nessa questão. Não importa se o prêmio é dado em papel, voucher ou cartão, o que importa é que ele é um prêmio e não salário", argumenta Silvana Torres, conselheira da Associação de Marketing Promocional (Ampro). De acordo com ela, em alguns países esse tipo de atividade é tão solidificado que as empresas acrescentam o vale-premiação aos benefícios que oferecem.

Para ficar fora de discussões legais, a Ampro contratou a consultoria PricewaterhouseCoopers para realizar um estudo que sirva de base para a redação de um projeto de lei que regulamente o uso desses instrumentos. A Incentive House é uma das empresas filiadas à Ampro que espera o parecer da Price. Cyrille Verdier, diretor da Incentive para América Latina, diz que as empresas buscam esses instrumentos porque seus resultados são muito maiores do que os investimentos em mídia convencional.

Silvana afirma que o foco das empresas de marketing de incentivo não é o cartão, mais sim um serviço mais completo, que busca desde a fidelização dos consumidores finais do produto de determinada empresa até o aumento da produtividade de seus funcionários. Ela avalia que a fiscalização da Receita e da Previdência veio em boa hora, "para saber quem faz bom ou mau uso do cartão".

Entretanto, nem todas as empresas que fornecem os serviços desses cartões são do ramo do marketing de incentivo. Um exemplo é o Banco do Brasil, que possui um cartão chamado Ourocard Empresa Pré-Pago Recarregável. A assessoria do BB informa que o cartão só é utilizado por pessoas jurídicas e que é um produto ainda pouco procurado. No entanto, o site do banco afirma que o cartão pode ser utilizado para pagar "incentivo a funcionários (campanhas de endomarketing), bonificações a vendedores", além de enumerar as vantagens tanto para a empresa que compra o serviço quanto para o portador.

A reportagem do Valor conversou com duas pessoas, contratadas com carteira assinada, que recebem 50% do seus salários mensais por meio desse cartão do BB - a outra metade é depositada em conta corrente. Uma delas é funcionária de uma empresa de recrutamento e seleção de pessoas e a outra trabalha em um laboratório de análises clínicas. A diferença entre elas é que uma recebe 13º salário e férias sobre o valor cheio do salário, enquanto a outra recebe somente sobre o valor que consta no contracheque.