Título: Câmbio ainda é competitivo, diz Goldfajn
Autor: Sergio Lamucci
Fonte: Valor Econômico, 27/12/2004, Brasil, p. A4

O ex-diretor do Banco Central (BC) Ilan Goldfajn não concorda com as críticas cada vez mais freqüentes ao nível do câmbio e ao regime de metas inflacionárias. Para ele, o real continua num nível competitivo, como mostram o bom desempenho das exportações e o superávit em conta corrente de 2% do PIB. Além disso, Goldfajn avalia que o "câmbio real está bem mais depreciado que em 1999, no momento da flutuação". O regime de metas, por sua vez, está longe de ser rígido, afirma Goldfajn, que vê bastante "flexibilidade" no sistema, como indicariam os resultados dos últimos anos: "Apesar de nós termos sofrido choques muito graves, como a crise da Argentina, a crise de energia, as eleições, não tivemos nenhum ano de recessão, e a inflação continua sob controle, a caminho de taxas ainda menores no futuro". Sócio da Gávea Investimentos, a gestora de recursos de Armínio Fraga, Goldfajn aponta a retomada dos investimentos como um dos fatores que o tranqüilizam quanto à sustentabilidade do ritmo atual de crescimento da economia. O outro é que a expansão do PIB já ocorre a uma velocidade menor - o avanço no terceiro trimestre foi de 1% em relação ao trimestre anterior, o equivalente a pouco mais de 4% em termos anualizados. Nos três trimestres anteriores, o ritmo superou 6% anualizados. Goldfajn também aponta a redução acelerada da vulnerabilidade externa, "à medida que o Brasil gera superávits na balança comercial, paga a dívida externa e o governo amortiza divida cambial". Mas, além de destacar a necessidade de o país recompor as reservas internacionais, ele diz que a vulnerabilidade externa só acaba quando a "vulnerabilidade interna" acabar. "Entenda-se vulnerabilidade interna como as dúvidas fiscais de longo prazo. Será que nós podemos crescer sustentadamente com tamanha despesa pública e tão elevada carga tributária?", pergunta. Embora não faça previsões para indicadores como crescimento e inflação em 2005, sua expectativa está em linha com a da maior parte dos analistas. Para ele, a expansão da economia deve ser menor que os 5% deste ano, mas ainda "substancial"; a inflação vai ficar abaixo da taxa a ser registrada em 2004 (algo como 7,4%), mas acima da meta ajustada de 5,1%; e o superávit comercial deve diminuir um pouco, num cenário de crescimento global mais fraco. A seguir, os principais trechos da entrevista. Valor: A economia brasileira está crescendo cerca de 5% neste ano, depois de um desempenho medíocre entre 2001 e 2003. O ritmo atual de expansão do PIB é realmente insustentável? Ilan Goldfajn: A economia brasileira resistiu bem a vários choques entre 2001e 2003, como a crise da Argentina, a crise de energia e as incertezas eleitorais em 2002, mas não teve fôlego para aumentar a capacidade produtiva. Os investimentos sofreram nos últimos anos. Portanto, estamos atingindo a plena capacidade relativamente rápido. Mas não acredito que o ritmo atual seja insustentável por duas razões. A primeira é que já estamos em ritmo menos acelerado, na casa de 4% ao ano. Além disso, os investimentos já voltaram. Valor: A alta de juros não pode afetar a ampliação da capacidade de oferta, em vez de reduzir a expansão da demanda? Goldfajn: Acredito que a perspectiva de vendas no futuro é o maior determinante da decisão de investimento. Com capacidade utilizada em níveis recordes, há bastante incentivo para ampliar a oferta. Os números recentes referendam isso. Valor: Há quem veja com preocupação a valorização do câmbio. Ela pode atrapalhar o desempenho do setor externo ou o real ainda é competitivo? O BC e o Tesouro não deveriam ser mais agressivos na recomposição de reservas? Goldfajn: Nós temos a necessidade de recompor reservas. Hoje, as reservas brutas estão em torno de US$ 50 bilhões, e as líquidas são um pouco menos que a metade. A diferença é o dinheiro devido ao Fundo Monetário Internacional. Devemos almejar ter as reservas brutas e líquidas em torno de US$ 40 bilhões, gradualmente adquirindo mais recursos, por meio de intervenção do BC ou compras do Tesouro, à medida que amortizarmos a dívida com o FMI. Quanto ao câmbio, acho que o real é competitivo. Nós estamos exportando bem, o saldo em conta corrente é de 2% do PIB e o setor privado está pagando a sua dívida externa. Se nós não tivéssemos que gerar uma conta corrente positiva para pagar a dívida externa e ainda acumular reservas, eu diria que o real está subvalorizado. Mas, por alguns anos, talvez tenhamos que conviver com ele assim. Valor: A avaliação de que o câmbio é competitivo se baseia só em resultados como o desempenho das exportações e no saldo em conta corrente ou também em algum cálculo sobre taxa real de câmbio? Goldfajn: Nos dois fatores. Eu não quero entrar em polêmicas sobre diferentes cálculos sobre o nível de taxa, mas o câmbio real está bem mais depreciado que em 1999, no momento da flutuação. Valor: A apreciação do câmbio se deve principalmente ao movimento global de desvalorização do dólar ou ao diferencial de juros internos e externos? Goldfajn: Parte da valorização do real está ligada ao movimento de apreciação de todas as moedas em relação ao dólar. Quanto ao diferencial de juros, se for verdade que o diferencial de taxas externas e internas é muito alto, haverá pressão para a apreciação do câmbio e eventualmente para a queda da inflação, o que abre espaço para a queda dos juros.

Não há problema de a inflação em 2005 ficar em 6%, mas isto não quer dizer que o BC deva mirar uma inflação neste patamar"

Valor: O BC elevou a meta ajustada de inflação de 4,5% para 5,1%. O mercado projeta 5,76%. A meta fixada não é irrealista? Há algum problema para a economia se a inflação de 2005 ficar mais próxima de 6% do que de 5%? Goldfajn: Não há problema de eventualmente a inflação em 2005 ficar em 6%, mas isto não quer dizer que o BC deva mirar uma inflação neste patamar, com o risco de a inflação passar de 6% e caminhar na direção de 7% ou até mais - no teto ou acima, portanto, da meta dada pelo Conselho Monetário Nacional. Valor: O sistema de metas no Brasil não é muito rígido? Perseguir uma meta para o ano-calendário faz sentido? Não seria melhor mudar esse horizonte? Goldfajn: Acredito que o sistema de metas, como foi idealizado e posteriormente praticado, tem bastante flexibilidade. Basta ver os resultados. Nos últimos anos, apesar de nós termos sofrido choques muito graves, como a crise da Argentina, a crise de energia e as incertezas eleitorais de 2002, não tivemos nenhum ano de recessão, e a inflação continua sob controle, a caminho de taxas ainda menores no futuro. O BC não dava, e acredito que ainda não dá, essa importância toda ao ano-calendário, como vários criticam. O importante sempre é a trajetória de inflação nos próximos 12 a 24 meses. Acredito que na medida em que no futuro a inflação no Brasil se acomodar num patamar menor, digamos de 4% ao ano, será mais fácil desenhar um sistema sem que a inflação no ano-calendário sirva como meta. A questão é que pode ser confuso desenhar metas de inflação cadentes fora do ano-calendário. Valor: Os juros já não estavam altos demais quando o BC começou a elevá-los? Goldfajn: O BC persegue a meta de inflação que lhe foi conferida pelo CMN. Se porventura o BC vier a errar, insistindo em manter elevados ou até aumentar os juros reais equivocadamente, será fácil perceber, pois a inflação ficará muito baixa e o crescimento sofrerá. Mas ainda não tivemos esta combinação de inflação abaixo da meta e recessão, desde a criação do regime de metas de inflação. Os juros reais devem e vão cair no futuro na medida em que o Brasil continue com o desempenho atual. A redução dos juros reais de forma sustentável depende de vários fatores, macro e microeconômicos, e do desempenho de todos no governo e na sociedade. Valor: A queda dos juros reais depende de que fatores macroeconômicos e microeconômicos? Com um risco país na casa de 400 pontos, superávits primários altos e saldos em conta corrente de 2% do PIB, os juros reais não poderiam estar bem abaixo dos atuais 10,5% a 11%? Goldfajn: O mais importante para reduzir o juro real é desenvolver uma história de crédito bem-sucedida, pagando tudo em dia, com superávit fiscal e reforma da previdencia. Com isso, à medida que ficar evidente que essas mudanças vieram para ficar, os juros podem cair para patamares similares aos dos outros países em desenvolvimento. Valor: O governo elevou o superávit primário de 4,25% para 4,5% do PIB e o dólar está em R$ 2,70. Essa combinação de fatores não tornaria desnecessária a alta de juros? Goldfajn: De fato, esses dois fatores contribuem para a queda da inflação. Por isso acredito que a inflação irá se manter controlada no ano que vem e voltará à trajetória das metas de inflação. Valor: O cenário externo em 2004 foi muito positivo, mas 2005 parece mais complicado., com o risco de desaceleração na China e os grandes desequilíbrios macroeconômicos nos EUA. O Brasil está preparado para um cenário externo menos favorável? Goldfajn: Não sei, mas certamente o Brasil está mais preparado no presente do que no passado. Houve vários avanços. A dívida cambial é menor, o câmbio é flutuante, o cenário fiscal está em ordem e há superávit na conta corrente. De qualquer forma, 2005 não está com toda essa cara ruim. A China desacelerou quase nada, o preço do petróleo tem caído nas últimas semanas, e os EUA continuam crescendo na margem. No entanto, é verdade que o mundo deve desacelerar do crescimento recorde deste ano. Também sempre existe o risco que a depreciação do dólar acarrete movimentos mais abruptos nos mercados de juros e outros ativos, podendo levar à crise. Neste caso, será um desafio para o Brasil e, por sinal, para quase todos os países do mundo. Valor: O Brasil vai registrar um superávit comercial de US$ 32 bilhões neste ano e de algo como US$ 25 bilhões em 2005. A dívida externa está em queda. A vulnerabilidade externa acabou? Goldfajn: A vulnerabilidade externa está diminuindo de forma acelerada, à medida que o Brasil gera superávits na balança comercial, paga a dívida externa e o governo amortiza dívida cambial. Mas a vulnerabilidade externa só acaba quando a "vulnerabilidade interna" acabar. Entenda-se "vulnerabilidade interna" como as dúvidas fiscais de longo prazo. Será que nós podemos crescer sustentadamente com tamanha despesa pública e tão elevada carga tributária? Outro problema a ser enfrentado é a dificuldade de fazer negócios no Brasil.