Título: Na bagagem de Hong Kong
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 16/10/2006, Opinião, p. A14

Aqueles que imaginavam que nossos diplomatas voltaram da reunião ministerial da OMC de dezembro de 2005 em Hong Kong de mãos abanando, enganaram-se. A bagagem que desembarcou no país continha uma surpresa desagradável para a indústria nacional. O governo brasileiro assumiu um compromisso para a facilitar o comércio com os chamados Países de Menor Desenvolvimento Relativo (PMDRs), por intermédio da implementação do tratamento dutty-free/quota-free em nosso comércio, uma "luz verde" automática para produtos de origem duvidosa.

Semelhante ao Sistema Geral de Preferências (SGP) adotado pelo governo dos Estados Unidos, voltado a países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, o sistema dutty-free/quota-free foi bem acolhido pelo ministro Celso Amorim, que tem demonstrado a face caridosa do governo Lula, sempre presente quando negocia com nações pobres ou com países vizinhos.

Vale ainda lembrar que atualmente o Congresso americano pressiona a Casa Branca para que o Brasil e a Índia sejam excluídos do SGP, sob o argumento de que os dois países já atingiram um nível de desenvolvimento e de participação no comércio internacional que não justificaria a manutenção das vantagens comerciais oferecidas. Por outro lado, parece realista recordar a postura brasileira e indiana adotada nas negociações da OMC, bem como a facilitação concedida pelo Brasil para a precipitada entrada no Mercosul da Venezuela, país que, por meio de seu principal mandatário, não perde nenhuma oportunidade para mandar suas estocadas ao presidente norte-americano.

O sistema de preferências proposto deverá beneficiar 32 países tais como Angola, Zâmbia, Haiti, Bangladesh, Benin, Camboja, entre outros. Baseado nele, produtos produzidos em qualquer PMDR poderão entrar no mercado brasileiro com isenção total de tarifas e cotas a partir de 2008.

Em agosto deste ano, setores da indústria foram convidados a conhecer o compromisso governamental e contribuir com eventuais comentários para a regulamentação do regime de origem. Mas o tempo oferecido foi tão exíguo que o convite mais pareceu um esforço de relações públicas, objetivando apenas legitimar a decisão adotada pela diplomacia verde-amarela.

Em primeiro lugar, na proposta apresentada não existem garantias efetivas com relação à origem dos produtos. Isso possibilita que produtos fabricados na China, ou em qualquer outra parte, sejam levados para o Camboja, por exemplo, e então exportados para o Brasil com selo "Made in PMDR", gozando desta maneira das preferências concedidas pelo Brasil. Para impedir que isso aconteça, é preciso que sejam fornecidos certificados de origem minimamente confiáveis, hipótese sobre a qual ainda pairam dúvidas.

Além disso, o índice de nacionalização proposto é de apenas 40%, o que significa que um produto supostamente fabricado no Benin poderá ter até 60% de seus componentes provenientes de outros países, possibilitando assim que "indústrias de fachada" instaladas nos PMDRs tenham no Brasil e em outros países que aderirem à proposta da OMC, mercado garantido para suas exportações.

Se atualmente o montante importado de tais países é relativamente baixo - cerca de US$ 24,5 milhões em 2005 - estes números deverão crescer sensivelmente com a adoção do sistema de dutty-free/quota-free, pois nações comercialmente agressivas, não demorarão em utilizá-los como plataforma exportadora, o que uma vez mais virá em prejuízo da indústria nacional.

-------------------------------------------------------------------------------- Produtos produzidos em PMDRs poderão entrar no mercado brasileiro com isenção total de tarifas e cotas a partir de 2008 --------------------------------------------------------------------------------

Não está se discutindo aqui o mérito ou a intenção do sistema proposto e, sim, sua efetividade. Entendemos que, por meio da facilitação do comércio, países com graves problemas sociais e econômicos, como os PMDRs, seguramente encontrarão melhores condições para seu desenvolvimento. Entretanto, o Brasil, em sua busca por uma posição de liderança dos países em desenvolvimento, deve fazer o que estiver ao seu alcance para estimular o comércio internacional, mas adotando medidas razoáveis, sem ingenuidade, e, principalmente, sem colocar em risco sua indústria e os empregos por elas gerados.

O acordo proposto seguramente estimulará a criação de maquiadoras nos PMDRs, pseudo-indústrias que nada fabricam, mas que, via de regra, importam componentes ou mesmo produtos terminados, que camuflados deverão representar o aumento da concorrência desleal no Brasil.

Caberá uma vez mais à indústria nacional analisar detidamente o tema, e propor outra modalidade de acordo que estimule o desenvolvimento daqueles países, porém sem colocar o setor produtivo uma vez mais sob risco aberto.

Alternativas para a proposta do governo brasileiro não faltam. O Brasil poderia adotar um acordo de livre comércio com os PMDRs, nos mesmos moldes daquele estabelecido pela China com Macau. Anualmente, os países beneficiários apresentariam listas positivas de produtos que poderiam gozar de preferências, desde que demonstrassem de fato estar fabricando tais produtos.

Por outro lado, por que não utilizar o SGPC, o Sistema Geral de Preferências Comerciais criado pela UNCTAD em 1990, pelo qual os países do G -77 negociam reduções tarifárias entre si, agindo na mesma direção ora proposta pela OMC? Isto evitaria a criação de um novo arcabouço de regras e regulamentos para controle de fluxos de importação, e também a geração de novos contenciosos em médio prazo.

O governo brasileiro, particularmente o Itamaraty, evitariam sucessivas, constantes e justas críticas de setores industriais, se deixassem de colocar interesses ideológicos acima dos interesses comerciais, e percebessem que o fato de não logramos celebrar nenhum acordo de comércio com países desenvolvidos, resulta do fato de que ninguém concede qualquer vantagem graciosamente.

Seguir insistindo e persistindo em uma estratégia equivocada, que sequer permitiu ao país alcançar uma acalentada liderança terceiro-mundista, não faz jus às tradições da casa de Rio Branco.

Humberto Barbato é diretor do Departamento de Comércio Exterior do Ciesp e diretor de Relações Internacionais da Abinee.