Título: Ignorados pelas prioridades do SUS
Autor: Sassine, Vinicius
Fonte: Correio Braziliense, 15/11/2010, Brasil, p. 6

Pacientes com doenças raras e graves precisam batalhar na Justiça em busca de remédios essenciais para os tratamentos: há 151 medicamentos com esse perfil ainda não incluídos no sistema público O Sistema Único de Saúde (SUS) tem uma deficiência de, pelo menos, 151 medicamentos de alto custo considerados necessários para o tratamento de doenças graves ou raras. Os remédios ausentes das relações oficiais do SUS equivalem a 27% de todos os medicamentos ofertados pela rede pública. Isso significa que o sistema de saúde pública não dispõe de um remédio recém-lançado pela indústria farmacêutica para quase quatro medicamentos cujo fornecimento já é uma obrigação do SUS.

A inclusão dos 151 medicamentos nas listas de distribuição obrigatória e gratuita é avaliada por uma comissão criada há pouco tempo pelo Ministério da Saúde, o Comitê de Incorporação de Tecnologia (Citec). Desde 2006, o comitê precisa decidir qual medicação deve ser incluída nas relações do SUS. A atuação do Citec, porém, tem ¿vários problemas nos processos de inclusão¿, principalmente a demora para que um novo medicamento passe a fazer parte das obrigações do SUS, segundo a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Em relatório sigiloso encaminhado neste ano à PFDC, o Ministério da Saúde detalha os 151 medicamentos que podem ser incluídos nas listas do SUS, conforme critérios adotados pelo Citec. A maioria desses fármacos foi sugerida por recomendações e ações judiciais do Ministério Público Federal (MPF) de diferentes estados.

Um paciente com um diagnóstico e uma receita médica em mãos esbarra na ausência do medicamento na rede pública e, então, decide procurar um advogado ou diretamente o MPF. Inquéritos são abertos para investigar a necessidade do medicamento recém-lançado e receitado pelos médicos. Constatada a eficácia do tratamento e descartados os interesses exclusivos pelo lucro dos laboratórios farmacêuticos, o MPF recomenda ao Ministério da Saúde ¿ ou cobra na Justiça ¿ a inclusão do fármaco nas obrigações do SUS.

Levantamento O Correio fez um levantamento de mais de 30 medicamentos que são cobrados pelo MPF e pela Justiça Federal, necessários para o tratamento de milhares de pacientes no país. As doenças são variadas, mas quem sofre mais à espera de um remédio são os portadores de doenças raras e graves, como algumas síndromes genéticas e manifestações específicas de alguns tipos de câncer. Os portadores da doença de Fabry, por exemplo, têm há apenas oito anos a possibilidade de se tratar com duas diferentes terapias. Até hoje, conforme a PFDC, os medicamentos não estão incluídos nas relações oficiais do SUS.

¿Se os medicamentos estivessem na lista do SUS, seria tudo muito mais fácil¿, afirma Wanderlei Centofante, presidente da Associação Brasileira de Pacientes Portadores da Doença de Fabry e Familiares. Segundo ele, pelo menos 170 brasileiros nasceram com um gene defeituoso e são desprovidos de uma enzima cuja função é eliminar gordura do organismo. Para terem acesso aos remédios existentes desde 2002, o único caminho é recorrer à Justiça. Pelo caminho judicial, conforme Wanderlei, muitos morrem antes de qualquer decisão.

Somente no ano passado, o Ministério da Saúde respondeu a 1.780 ações judiciais com pedidos de medicamentos. Foram gastos R$ 83,1 milhões para adquirir os remédios exigidos pela Justiça. Quase todas as ações, segundo o ministério, cobravam atendimento contínuo aos pacientes, dependentes de medicamentos de uso prolongado. Mais de 1,1 mil diferentes fármacos foram comprados por via judicial, o que envolve medicamentos de alto custo e de assistência básica. São, portanto, duas circunstâncias que levam à judicialização da assistência farmacêutica no Brasil. Uma é a falha das listas oficiais do SUS, que deixam de incluir produtos básicos para o tratamento de doenças raras. A outra é a própria incapacidade de suprir o fornecimento de medicamentos básicos, que já constam das relações oficiais do sistema público de saúde.

Efeito Em março deste ano, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) reforçou a atribuição da União de custear medicamentos de alto custo a qualquer cidadão brasileiro, independentemente de o produto integrar ou não a lista de obrigações do SUS. Tanto o governo federal quanto a prefeitura de Fortaleza (CE), no caso avaliado pelo STF, tentavam se livrar da determinação judicial de custear o tratamento dado a uma jovem de 21 anos, portadora de uma doença neurodegenerativa rara, conhecida como Niemann-Pick tipo C. A base do tratamento é um medicamento chamado zavesca. Para o Poder Público, não ficou comprovado que o remédio é eficiente. Para o STF, em decisão do ministro Gilmar Mendes, a investigação do MPF comprovou que a medicação surtia efeito contra a doença.

O caso de Fortaleza, que norteou a decisão do STF, não é o único no país que levou a uma manifestação do MPF. O procurador da República Ailton Benedito de Souza, de Goiás, expediu uma recomendação para que o Ministério da Saúde, num prazo de 30 dias, desse início a um processo de inclusão do zavesca no tratamento conferido pelo SUS a pacientes com a síndrome de Niemann-Pick. Segundo apuração do procurador, o tratamento contra a doença custa cerca de R$ 22 mil por mês. ¿Existe um medicamento para o tratamento da síndrome. Apesar de não curar a doença, impede seu avanço¿, argumentou o procurador.

O principal argumento do Ministério da Saúde para a não inclusão de um medicamento é a falta de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou a possibilidade de substituição por produtos já oferecidos gratuitamente pelo SUS. O procurador Ailton Benedito diz que boa parte dos medicamentos de alto custo mais modernos já foi aprovada pela Anvisa. ¿O MP e o governo não podem ser instrumento de lucro dos laboratórios, mas nada justifica um medicamento estar aprovado pela Anvisa e não estar incorporado no SUS.¿