Título: Os riscos e os desafios da internacionalização
Autor: David Travesso Neto
Fonte: Valor Econômico, 27/12/2004, Opinião, p. A8

O relatório divulgado recentemente pela UNCTAD sobre o aumento dos investimentos de empresas brasileiras no exterior - US$ 9,5 bilhões esperados para 2004 - revela grande mudança cultural no Brasil. Do lado empresarial, sinaliza uma evolução nos objetivos estratégicos, um grande movimento para ganhar capacidade competitiva e coragem para enfrentar novas realidades. Também representa uma verdadeira revolução no modelo mental até então predominante na sociedade, em que internacionalização era somente criar empregos em outros países. Já é um grande começo para um país, que até alguns anos atrás não se permitia o acesso às tecnologias de informática desenvolvidas no mundo, mas a questão ainda não é compreendida em toda sua amplitude, sobretudo quanto aos desafios e riscos resultantes desse processo. É gratificante ver o amadurecimento e o aprendizado coletivo, que nos levam a enxergar ganhos indiscutíveis no processo de crescimento das nossas empresas além fronteiras. O antigo e ultrapassado modelo da "empresa genuinamente brasileira" começa a ser deixado de lado, substituído pela busca da "empresa globalmente competitiva". São inquestionáveis os ganhos decorrentes desse movimento: nossas empresas ficam mais fortes, competem nos vários mercados e fortalecem suas posições no mercado local, gerando mais empregos e riqueza. Na medida em que mais empresas se internacionalizam, esse processo evolui e traz melhorias para o país e para os brasileiros. Além de ampliação de mercado, nossas "multinacionais" trazem conhecimento, tecnologia e novos processos, contribuindo para um melhor posicionamento estratégico, mas também melhorando os fornecedores - com exigências de padrão global - e obviamente transferindo tudo isso para o mercado local. Se, na última década, o grande motivador dos investimentos das empresas brasileiras no exterior era o aproveitamento de benefícios de paraísos fiscais, com óbvias e justas motivações financeiras, é nítido hoje que os novos motivadores estão diretamente associados a ganhos de competitividade e ampliação de mercado. O caminho natural das empresas no mercado internacional é tornarem-se inicialmente exportadoras. Mas enquanto ser exportador traz resultados imediatos - está diretamente associado ao esforço comercial e pode ser uma mera replicação do modelo local -, ser internacional significa efetuar mudanças em toda a organização para entender e aprender sobre a diversidade do mundo.

A empresa 'genuinamente brasileira' começa a ser substituída pelo modelo da empresa 'globalmente competitiva'

As empresas brasileiras começaram tarde por razões conhecidas de estratégia empresarial e políticas públicas. Não temos mais tempo para choro ou arrependimento. Já perdemos o medo exagerado de ser batidos em nosso campo e partimos para a disputa nos mercados globais. Algumas empresas têm investido e trabalhado intensamente para encurtar o caminho e recuperar o atraso, mas o grupo precisa crescer rapidamente e algumas mudanças na sociedade também se fazem necessárias. O processo de internacionalização é longo - porque exige aprendizado por acertos e erros -- e caro - porque exige investimentos significativos de retorno demorado. De maneira simplista, podemos dizer que os desafios empresariais se situam em dois eixos: o da estratégia e o da preparação das pessoas. Mas não podemos deixar de considerar que o sucesso das empresas nessa empreitada exige ainda um movimento simultâneo de internacionalização do Brasil. Nas empresas, tudo começa com o desenvolvimento de competências na formulação e implementação das estratégias do negócio e da gestão. Tradicionais fontes de vantagem competitiva - custo baixo, acesso à matéria-prima e tecnologia - continuam sendo necessárias, mas são insuficientes. A longa exposição das empresas brasileiras ao modelo tradicional traz o primeiro grande desafio: um novo modelo de gestão que permita desgarrarem-se do passado para entender as novas realidades e achar o caminho do sucesso. Alianças, aquisições e integração são palavras que passam a ter significado mais amplo e complexo. O exercício do "compartilhamento de poder" em fusões e aquisições deverá ser intensificado, em contrapartida aos projetos "greenfield", que partem do nada e que prevaleceram nos últimos anos. Segundo relatório da UNCTAD, nos últimos quatro anos as empresas brasileiras investiram em 84 projetos "greenfield" e somente 19 aquisições. Expatriação, impatriação e repatriação são palavras novas no vocabulário dos gestores de pessoas. Teremos de abrir nossas fronteiras e nossas cabeças para a entrada e atuação de estrangeiros nas empresas brasileiras. A convivência com questões multiculturais é essencial para a criação do modelo mental exigido. Por outro lado, essa convivência multicultural também será necessária à internacionalização do país. Infelizmente, a posição geográfica e a extensão do Brasil não nos favorecem. De certa forma, vivemos isolados. Precisamos repensar nosso grau de conhecimento sobre as várias culturas e povos, mesmo aqueles mais próximos. Nosso sistema educacional exigirá um salto de qualidade, em todos os níveis, muito além do que hoje imaginamos necessário. Nossa infra-estrutura deverá ter padrões de primeira classe e o governo, as leis e regulações deverão também ter padrão internacional. Tarefa árdua e grandes desafios! O maior risco é deixar o dever de casa incompleto, alcançando sucesso somente no movimento de internacionalização das empresas. Seria infantil acreditar que as "empresas brasileiras" ficarão aqui apenas por laços sentimentais com os acionistas. Já que o conceito é ser "globalmente competitivo", ou o Brasil acompanha a evolução de suas multinacionais ou seremos apenas uma eficiente plataforma paroquial de transformação de matéria-prima. Como consolo, ao final de cada ano poderemos orgulhosamente comemorar a transformação das "multinacionais brasileiras" em transnacionais de sucesso. Assim como vibramos quando nossos "Ronaldos" são eleitos craques do ano, jogando nos campos do mundo, para o prazer dos olhos de outras torcidas.