Título: A doce bruma matinal e as almas não tão pequenas
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 17/10/2006, EU & Investimentos, p. D6

Após cerca de 45 dias acompanhando a fase da colheita em algumas regiões vinícolas européias - este é o sexto relato sobre o que vivenciei no período -, é hora de arrumar as malas e voltar à prazenteira rotina brasileira. Não sei se foi muito ou pouco tempo fora, e não se preocupar em saber é bom sinal. Valeu, sobretudo, ter tido a oportunidade de participar dos momentos mais importantes do calendário de um produtor de vinho, quando, num esforço final, vê-se o resultado de um ano inteiro de trabalho.

Como conseqüência de um esforço coletivo e, supostamente, em especial no passado, de garantia de sustento para o ano que vem pela frente, o término da colheita é celebrado segundo tradições e costumes de cada região. Em Bordeaux, particularmente, acontece a "gerbaude", onde cada château, em maior ou menor grau, reúne todos os que estiveram envolvidos na vindima para uma grande comemoração. No Mouton Rothschild, que congrega ainda o pessoal das outras duas propriedades do grupo, o Clerc Milon e o d'Armailhac, são ao redor de 700 pessoas. No Château Margaux, num alegre almoço para 250 pessoas, com direito a música e a todos beberem (noblesse oblige), pelo menos uma vez na vida, o principal vinho da casa - este ano foi o 1979 -, há uma pequena cerimônia com a entrega de um buquê de flores à proprietária, Corinne de Mentzelopoulos.

Se a festa significa o término do trabalho para muita gente, não o é para quem está nos "chais" (a cantina onde se processa a vinificação), etapas que procurei descrever nos artigos anteriores. Na minha última semana de assistente do "maître de chais" Marcelo Pelleriti, dos Châteaux Le Gay e La Violette, em Pomerol, as coisas estavam bem calmas até sexta-feira, quando, atendendo orientação do consultor Michel Rolland, que por lá havia passado alguns dias antes, foi necessário completar o nível das barricas utilizadas no tão peculiar processo de fermentação do último. Mais uma provação pela frente. No fundo, cada passo na vinificação do La Violette exige atenção e criatividade. Nada é simples, nem óbvio.

Os irmãos Lamothe produzem uma cuvée especial com vinhas de 100 anos Enfim, depois de se tentar passar o vinho de um barril para encher outro através de um sistema de pressão com nitrogênio, um método bom na teoria e pouco eficiente na prática, optou-se por elevar as barricas por meio de uma empilhadeira, esgotar seu conteúdo numa tina apropriada e daí transferir o líquido para seu destino. Aguardando o esvaziamento de cada barril, um tanoeiro lhe retirava o fundo e as cascas impregnadas com vinho eram encaminhadas para uma moderna prensa vertical de onde se obtinha um primeiro e rico "vinho de prensa" para ser incorporado ao "vin de goute", o "vinho flor".

Não era pouca a quantidade necessária para deixar as barricas plenas: foram abertas 12 para deixar as demais 23 completas. Nessas o vinho ainda deverá ficar macerando com as cascas por mais dez dias antes da prensagem definitiva, para depois retornar aos barris e iniciar seu processo de amadurecimento por mais 20 ou 22 meses.

É ainda prematuro afirmar que a fermentação em barrica fará toda a diferença num vinho como o La Violette - as análises de índices de polifenoís recebidas do laboratório na terça-feira passada são animadoras, inclusive se comparados com o Le Gay, elaborado também com todo esmero, mas empregando um sistema mais clássico (um clássico moderno) de fermentação em cubas de madeira de 6000 litros. Em todo caso quando se tem um terroir com a riqueza do La Violette é preciso buscar expressá-lo em sua plenitude, e ânimo para tanto não falta. Como diria Fernando Pessoa, "tudo vale a pena quando a alma não é pequena".

Estar em Bordeaux em época de colheita implica necessariamente em ver o que se passa em Sauternes, região conhecida pela excelência de seus vinhos doces. Para ter esse reconhecimento é necessário que mamãe natureza seja muito benevolente.

Naquela zona de colinas suaves, situada a cerca de 40 km ao sul da cidade de Bordeaux, uma conjunção favorável de fatores climáticos contribui para o aparecimento de um fungo denominado Botrytis Cinérea que age sobre os bagos das uvas, levando-os à perda de água ao mesmo tempo em que concentra o açúcar e o glicerol (que dá untuosidade ao vinho) e aumenta os índices de acidez e demais componentes sólidos do fruto. Curiosamente esse fenômeno não se manifesta um pouco acima dali, em Pessac-Léognan, conhecida pela qualidade de seus vinhos brancos secos.

É um capricho da natureza e tem a ver com a bruma matinal que recobre os vinhedos no outono em Sauternes. Ela se forma devido às águas relativamente frias do rio Ciron, que margeia a região, em oposição à temperatura mais elevada do Garonne, importante rio que segue ao norte para contornar a cidade de Bordeaux e formar o estuário Gironde. É a conta para permitir o desenvolvimento e multiplicação da Botrytis, dissipando-se a névoa quando o sol esquenta e a brisa sopra, a tempo do fungo não enveredar para uma vulgar e nefasta podridão.

Um presente desses tem de ser manejado adequadamente. Produzir vinhos doces a partir de uvas botrytizadas não é uma tarefa fácil e buscar a perfeição, como é o caso de alguns Châteaux, e em especial o mais famoso deles, o d´Yquem, é mais complicado ainda.

Ocorre que o fungo ataca cada grão de uva individualmente, estendendo-se de forma lenta e gradual por todo o cacho. Isso pode simplesmente não ocorrer, por falta de condições climáticas propícias para o fungo se desenvolver - não houve d´Yquem em 1992, por exemplo -, ou pode levar 60 dias para se consumar o que obriga a passagens sucessivas no vinhedo, colhendo-se manualmente apenas as uvas infectadas.

Para quem soube fazê-lo, 2006 será um boa safra, caso do Château Haut-Bergeron, um vinho que acompanho desde 1987, por indicação de um amigo canadense. Na última quarta-feira, quando da quarta e derradeira passada dos vindimadores pelas vinhas, vi o rigor com que os dois irmãos Lamothe, Hervé, que fica mais no campo, e Patrick, que cuida mais da vinificação, conduziam o pessoal na seleção do que colher. Entre cachos inteiros abandonados e o descarte de uvas impróprias, não tem perdão se a meta é manter padrão elevado.

Do vinhedo para as cubas, onde fermentavam em estágio adiantado as primeiras uvas colhidas, comprova-se o bom trabalho de triagem na vindima. A área de vinhas do Haut Bergeron se compõe de parcelas situadas em 3 comunas, Preignac, onde é a sede e a cantina, Barsac e Sauternes propriamente dito, esta última magnificamente situada ao lado do d´Yquem. Ainda que a amostra provada da cuba proveniente de Sauternes seja realmente superior - terroir é terroir - a qualidade das duas outras é louvável. Todas estavam na ordem dos 9 a 10 graus alcoólicos, com mais outros 10 a 12 graus potenciais para se transformar. Isto é, avançando a fermentação mais uns 3 graus, o Haut Bergeron 2006 terá em torno de oito graus de álcool não transformado, o que significa perto de 140 gramas por litros de açúcar residual.

O que chama atenção nos bons Sauternes, em geral, e nos Haut Bergeron degustados, em particular, é o equilíbrio álcool/açúcar/acidez, que enseja vinhos intensos e elegantes, com bom contraponto de acidez (é fundamental para não resultar enjoativo). Difícil, porém, é conseguir descrever as sensações que provoca uma cuvée especial que os irmãos Lamothe resolveram produzir a partir de 1996, quando uma pequena parcela de vinhas que eles têm completou 100 anos de idade. Esse primeiro lote foi denominado Cuvée 100 e os demais recebem números subseqüentes. Anualmente são produzidos apenas dois barris, e mesmo assim quando a qualidade da colheita o permitir, o que de fato aconteceu de 1996 para cá.

É, a propósito, uma década bastante favorável para a região, com alguns destaques, sem dúvida, caso dos fantásticos 2005, 2003, 2001 e 1997, sem uma safra que possa ser considerada ruim, o que contrasta com a primeira metade da década de 90, bastante sofrível. O que falta agora é esse gênero, hoje um tanto esquecido, voltar à moda. Seja para o clássico acompanhamento de sobremesas (sem chocolate), foie gras e queijos azuis, ou numa compatibilização mais arrojada com pratos salgados. Aí podem entrar alguns pratos condimentados ou os sutis canard a l´orange e uma poulet de Bresse à la crème, receita do chef francês Georges Blanc. Como dizem os franceses moderninhos, "niquél".

colaborador-jorge.lucki@valor.com.br