Título: Círculo do horror
Autor: Verdini, Liana
Fonte: Correio Braziliense, 13/11/2010, Economia, p. 15

Brasil S/A

G-20 adia o que a guerra cambial oculta: a queima da produção que a crise tornou ociosa no mundo

A cúpula dos líderes do Grupo dos 20 (G-20) em Seul terminou como começou: dividida, sem acordo e abraçada à questão subsidiária da guerra cambial para não discutir o problema maior da crise global.

Não o fizeram porque não sabem o que fazer para o que está em jogo e será agravado com as desvalorizações cambiais competitivas: a capacidade produtiva tornada ociosa pela desmontagem do circuito do crédito potencializado por uma liquidez agigantada pelas bolhas de especulação que aumentaram os preços de vários ativos, de casas nos EUA a grãos de soja no Brasil. A ilusão da riqueza acabou.

Restaram dívidas recordes, sobretudo nos países industrializados da primeira onda, consumidores endividados e produção maior que a demanda potencial quando vier a hora do ajuste, que para os países da zona do euro mais frágeis, como Grécia e Irlanda, já chegou.

Hoje, os bancos centrais, inclusive de países emergentes que até agora sofreram pouco com a crise, são os maiores compradores dos títulos de dívida que os Tesouros nacionais emitem. E isso porque não há demanda privada voluntária suficiente para absorvê-los.

Esse é o panorama que pairou sob as cabeças dos líderes que foram a Seul. A tal da guerra cambial, que a rigor não começou mas está à vista, é metáfora para o que a crise descobriu: que há produção a mais no mundo para comprador de menos. O equilíbrio se fará com o fechamento de indústrias. E o conseqüente desemprego e convulsão social. Quem são os candidatos? Como as perdas vão distribuir-se?

De algum modo, embora em posições opostas, foram essas as mesmas preocupações manifestadas no G-20 pelos presidentes Lula e Barack Obama. Sem acordo, o protecionismo disfarçado pela desvalorização induzida das moedas se tornará formal. Ninguém ganhará com isso.

Na verdade, já admitiram a derrota, como o reconhecimento que se lê na sofrida declaração final da cúpula de Seul, segundo o qual ¿medidas macroprudenciais cuidadosas¿ são aceitáveis aos países com reservas adequadas e taxa cambial sobrevalorizada. É o caso do Brasil. E o que significa? Parece aval para o controle do ingresso de capitais estrangeiros. Se todos fizerem isso, o comércio global irá à lona, como nas décadas de 1920 e 1930, dando no que se sabe.

Sequelas dos abusos... E ainda há quem afirme que a crise acabou. A insolvência seriada dos bancos foi contida nos EUA e Europa, centros irradiadores da farra do crédito farto, barato e cego ao risco e do desregramento do sistema financeiro. Evitou-se a caminhada para a depressão, mas ao custo do endividamento superlativo dos países industrializados e de deficits fiscais, cuja reversão ameaça o estado de bem-estar social da Europa e a hegemonia política e econômica dos EUA.

Em relação a tal cenário, a disputa cambial é apenas o sintoma de males mais profundos, do mesmo modo quando a inflação dispara e os juros saem em seu encalço tentando enjaulá-la. Nem os juros nem a inflação nem moeda desalinhada são as causas primárias dos males da economia. São, em geral, as sequelas de abusos cometidos sempre em nome de boas causas ou de doenças congênitas à economia.

...e reação a aberrações A economia global reage hoje a uma serie de aberrações cometidas nos últimos 40 anos, basicamente pela permissividade dos deficits duplos, o fiscal e o externo, dos EUA. O que foi distorção para a economia americana, porém, foi semente para a economia de outros, como o Japão e Alemanha, os primeiros a se industrializarem graças ao ¿capital de giro¿ do mundo: a liquidez crescente do dólar.

Depois vieram os emergentes, encabeçados pela China. Ela copiou, mas aprofundando, o que fazia o Japão. Usou o capital de giro do dólar, primeiro, para criar indústrias para exportar. Depois, para expandi-las ao nível da demanda mundial, mas pautadas pelo grau de consumo que os EUA franqueavam como maior mercado consumidor.

Impotência dos líderes A estratégia não teria passado do surrado mercantismo, se a China não inovasse, passando a destinar o seu superavit acumulado sob a forma de reservas de divisas para a compra de papéis de dívida dos EUA, e ainda oferecendo sua mão-de-obra servil e mal paga, além de legislação tolerante com direitos trabalhistas e meio ambiente, às multinacionais americanas para que levassem suas fabricas para lá.

É esse círculo de horror, misto de imprudência política e soberba dos governos e falta de preocupação social das multis americanas, que explica o atual desequilíbrio entre os megasuperavits da China e os deficits dos EUA. E o G-20 continua impotente para resolver.

Lula pregou altruísmo O ¿big bang¿ da grande crise está aí: a gigantesca capacidade de produção que ficou ociosa com o fim do desregramento do crédito ¿ um desvirtuamento da globalização, que pode tê-la ferido a fundo.

Das declarações duras da chanceler da Alemanha, Angela Merkel, ao pito de Lula em Obama, o G-20 exibiu mais a inaptidão dos líderes para achar uma solução aos desequilíbrios globais, sobretudo entre EUA e China ¿- dos quais todos se locupletaram ¿, que o altruísmo requerido pelo tamanho da confusão. Lula defendeu que o G-20 não é ¿cada um por si e Deus por todos. É todos por todos e Deus por todos¿. Não foi ouvido. O Brasil não é parte da crise, e sapo de fora, como se sabe, não chia. Mas, dependendo dos desdobramentos da desunião do G-20, muita coisa terá de mudar daqui para frente.