Título: O protagonismo da lavagem de dinheiro
Autor: Prestes , Cristine
Fonte: Valor Econômico, 14/09/2012, Política, p. A6

Há alguns anos o direito penal brasileiro vem sofrendo aparentes transformações. No influxo estrangeiro, a própria produção jurídica nacional reflete de certo modo essas mudanças. Um simples lançar de olhos às estantes de livrarias permite constatar, para além de verdadeira enxurrada de resumos e sinopses de duvidosa qualidade, o aumento do número de obras atinentes ao tema da criminalidade econômica. O homicídio e o furto dão, ao menos em termos doutrinários, lugar à evasão de divisas e à sonegação fiscal. A doutrina nacional parece gradativamente produzir cada vez mais trabalhos relacionados a essa nova faceta do sistema criminal. Sem maiores precisões estatísticas, talvez seja possível também dizer que o delito de lavagem de dinheiro possui, nesse ínterim, notório destaque.

O julgamento do mensalão, ao se debruçar sobre as imputações de lavagem de dinheiro, traz essa imagem novamente à tona. Tal delito assume contornos de protagonismo, de personagem principal do trágico romance. Entretanto, algumas indagações, daquelas que pela simplicidade talvez não se façam mais, devem ser enunciadas: como poderia um coadjuvante por definição assumir o papel mais importante? Estar-se-ia aqui a enfrentar um problema antigo com novo figurino?

De forma bastante genérica, é possível dizer que o tema elementar envolvido na lavagem de dinheiro em nada é novo. Remonta a questões suscitadas pelo menos dois séculos atrás. Autores clássicos italianos, como Carrara, já se questionavam como punir aqueles que se aproveitavam do crime cometido por outro, ou seja, como evitar que pessoas perpetuem uma cadeia de ilicitudes. A fórmula do concurso de pessoas era, e permanece sendo, insuficiente, impedindo que simplesmente fosse possível imaginar o autor posterior como coautor ou partícipe do delito antecedente. Isso decorre, aliás, dos próprios requisitos construídos pela ciência jurídica do concurso de agentes. Ao se exigir um acordo prévio de vontade entre os múltiplos responsáveis pelo mesmo crime, tal construção deixava escapar qualquer participação posterior, haja vista a inexistência dessa unidade de desígnios prévios ao cometimento do crime antecedente e, por isso mesmo, aqui chamado de principal. Essa lacuna, contudo, não era político-criminalmente razoável. Punir aquele que se aproveitava do crime anterior tornava-se fundamental. Partia-se da premissa de que, ao punir esse acessório, desmotivava-se a prática de crimes. Não é, portanto, à toa que nasce aí, especificamente no código bávaro de 1813, a conhecida receptação como crime autônomo, hoje presente no artigo 180 do Código Penal brasileiro.

Afinal, se ninguém estivesse disposto, seja por razões éticas ou jurídicas, a adquirir o relógio de proveniência criminosa, menor seria o ímpeto na subtração desse tipo de bem. A lavagem de dinheiro, febre mundial de criminalização desde o fim dos anos 80 do século passado, traz consigo raciocínio similar. Caso não exista aquele desejoso de ocultar ou beneficiar-se de algum modo de valores provenientes do tráfico de drogas ou de corrupção, naturalmente minguariam as práticas delitivas dessas espécies. O que ocorreu, contudo, em nada se parece ao almejado.

A punição desses delitos instrumentais não se mostrou apta a efetivamente diminuir a incidência daqueles outros a que se relacionam. Esse malogro, por sua vez, inconsciente de suas próprias deficiências, conduziu ao recrudescimento da lavagem em termos nunca vistos. As penas foram aumentadas, as estratégias de controle incrementadas, as hipóteses de ocorrência alargadas. Sorrateiramente o acessório virou principal. Atualmente as condenações por lavagem de dinheiro tantas vezes se esquecem até de perquirir aquilo que é o mais importante: qual o delito antecedente? Mundialmente a saída encontrada foi a da facilitação, isto é, como o Estado é incapaz de bem perseguir as infrações que de fato abalroam as estruturas sociais (e principalmente econômicas) contentemo-nos com as punições das exteriorizações. Num palavreado metafórico, seria o reconhecimento do caráter incurável da doença, com o qual a preocupação que resta recai somente sobre os sintomas, reconfortando a alma do paciente moribundo submetido inertemente a tratamento inoportuno e desproporcional.

Em vários momentos, a punição da lavagem em muito supera aquela prevista para os crimes que lhe são razão de existir. Esse dado merece, ao menos, reflexões. Em conclusão, algo sempre deve estar errado quando as atenções se voltam mais ao coadjuvante do que ao protagonista. Quiçá seja o caso de se mudar o roteiro, aqui entendido como a política criminal em vigor.

Alamiro Velludo Salvador Netto é professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)