Título: Saúde é prioridade
Autor: Silva , Érica Quinaglia
Fonte: Valor Econômico, 14/09/2012, Opinião, p. A14

Em um aspecto a saúde pública não se distingue de outros serviços prestados pelo Estado brasileiro: a vastidão que separa a ampla justiça das leis e o duro cotidiano da população. Para citar alguns exemplos, basta invocar o artigo 6º da Constituição Federal, que estabelece como direitos sociais, além da saúde, a educação, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, entre outros. Com relação à saúde, a Constituição de 1988 extinguiu um regime com atendimento restrito aos contribuintes da Previdência Social (INAMPS) e instituiu o SUS (Sistema Único de Saúde), garantindo serviços de saúde universal e integral para a sociedade brasileira.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2010, os gastos com saúde por habitante no Brasil estão muito próximos da média mundial e 16% abaixo da média de países como Argentina, Uruguai e Chile. Se considerarmos apenas os gastos do governo, nossos números ficam, respectivamente, 36% e 30% abaixo da média. Os dados sugerem um espaço para ampliação dos gastos públicos, mas ainda assim não há garantias do pleno atendimento previsto nos dispositivos constitucionais. Com o permanente desenvolvimento tecnológico, a cada momento surgem novos exames, medicamentos e procedimentos médicos, aumentando as possibilidades dos gastos. Contribuem para o aumento dos custos, ainda, a maior longevidade da população e a intensiva atenção dispensada à população da terceira idade. E esse fenômeno está longe de se restringir à nossa realidade, motivando reavaliações na condução de políticas de saúde em diversos países.

Em economia, o racionamento é um mecanismo utilizado para restringir a demanda e manter os preços artificialmente baixos. No caso da prestação de serviços públicos o racionamento geralmente decorre da insuficiência de recursos para o atendimento completo da demanda. O racionamento se impõe, portanto, não como um ato explícito debatido entre os representantes da sociedade, mas de maneira implícita, na capacidade de arrecadação dos governos e na necessidade de repartição dos recursos escassos entre outras áreas. A mesma casa que garante a total amplitude dos direitos é a que aperta as amarras ao promulgar suas peças de diretrizes orçamentárias.

A "judicialização da saúde" nos remete a questões sobre como distribuir os recursos escassos da economia

Na prática, quantidade e qualidade na prestação dos serviços de saúde acabam sendo comprometidas, resultando em longas filas de espera e grande insatisfação. De acordo com uma pesquisa publicada em janeiro de 2012 pela CNI em conjunto com o Ibope, 61% da população brasileira considera o serviço de saúde pública ruim ou péssimo e 55% considera a dificuldade/demora na obtenção do atendimento como seu principal problema, seguida da falta de estrutura e de médicos. Privilegiados arcam com os custos da rede privada ou adquirem planos de saúde na busca por um melhor atendimento, parcela que corresponde a aproximadamente 24% da população brasileira.

Essa total contradição entre o suporte legal e as possibilidades reais tem gerado um conflito entre os poderes Judiciário e Executivo. Não são raros os casos de sentenças judiciais obrigando governantes a proverem recursos para aquisição de medicamentos ou atendimentos em redes particulares, os quais muitas vezes são adquiridos às pressas a preços bem acima da média. Além da ineficiência inerente à compra não planejada, há casos em que esses recursos somam cifras elevadas e comprometem parte significativa do orçamento público. Um caso paradigmático é o das mucopolissacaridoses, pelo volume de recursos movimentados em cada ação e pelo tamanho reduzido da população. Entre 2006 e 2010, 195 indivíduos beneficiados por 196 decisões judiciais consumiram R$ 219 milhões com a compra de medicamentos para o tratamento dessas doenças genéticas raras.

A "judicialização da saúde", como tem sido chamada essa suposta ingerência, nos remete a questões jurídicas envolvendo a separação e competência dos poderes, mas especialmente a questões econômicas extremamente relevantes sobre como distribuir os recursos escassos da economia. É evidente a necessidade de se reconhecer o racionamento como condição perene e de se estabelecerem princípios e regras para a prestação dos serviços de saúde, nos quais sentenças isoladas sejam substituídas por políticas públicas sustentáveis e bem fundamentadas.

Um exemplo dramático dessa realidade envolve a cirurgia de remoção completa da mama (mastectomia) em pacientes vítimas de câncer. O serviço público garante a reconstrução mamária, reduzindo-se eventuais danos psicológicos decorrentes da alteração física da paciente. Porém, o tempo para realização da mastectomia com a subsequente reconstrução da mama daria para realizar três mastectomias. A longa fila de espera para realização da cirurgia e a impossibilidade de ampliação imediata na infraestrutura em algumas unidades colocam a equipe médica diante de uma "escolha de Sofia". Como complicador, há o fato de que a demora na realização da cirurgia pode comprometer as chances de cura das pacientes.

O filósofo e poeta norte-americano Henry David Thoreau já disse que "preço de qualquer coisa é a quantidade de vida que se troca por ela". Segundo esse raciocínio, a coisa mais cara ao ser humano seria sua própria vida, por completo. Em muitas situações, não é tão fácil saber a quantidade de vida que se ganha ou que se perde, mas ainda assim somos forçados a fazer escolhas. O racionamento significa fazer essas escolhas, com menor ou maior grau de complexidade, a partir do estabelecimento de prioridades a determinados tipos de pacientes, procedimentos ou doenças. Aspectos médicos e econômicos devem ser observados, mas esse é sobretudo um dilema ético. Trata-se de um problema típico de escolha social em que se pretendem melhorias no bem estar da sociedade face à heterogeneidade de seus integrantes e ao conjunto de seus valores morais. Não há solução fácil, mas a percepção do problema e a construção de um debate amplo e realista já representam um amadurecimento, um avanço.

Érica Quinaglia Silva é professora da UnB. Doutora em Antropologia e Sociologia pela Université Paris Descartes - Sorbonne. Pós-doutora em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva.

Vinicius Ratton Brandi é professor do Ibmec-DF e doutorando em Economia pela UnB.