Título: No coração da eleição americana
Autor: Rajan , Raghuram
Fonte: Valor Econômico, 14/09/2012, Opinião, p. A15

Um debate real vem emergindo nas campanhas para eleição presidencial nos Estados Unidos. Em sua superfície, refere-se à assistência médica e impostos. Em sua essência, trata-se da democracia e livre iniciativa.

A democracia e a livre iniciativa parecem se reforçar mutuamente - é difícil pensar em alguma democracia próspera que não seja uma economia de mercado. Além disso, embora várias economias, em teoria, socialistas tenham adotado a livre iniciativa (ou "socialismo com características chinesas", como diria o Partido Comunista chinês), parece ser apenas uma questão de tempo até que se vejam obrigadas a tornar-se mais democráticas.

A priori, no entanto, ainda não está claro por que democracia e livre iniciativa deveriam reforçar-se mutuamente. Afinal, democracia implica considerar os indivíduos como iguais e tratá-los como iguais, com cada adulto tendo direito a voto igual, enquanto a livre iniciativa fortalece os indivíduos com base em quanto valor econômico criam e quantos bens possuem.

Seja qual for o resultado das urnas, a tensão entre democracia e livre iniciativa não convém a ninguém. Um sistema de livre iniciativa que seja sustentado só pelo poder do dinheiro dos bem-sucedidos não é estável e é improvável que mantenha sua energia por muito tempo.

O que impede, em uma democracia, que o eleitor médio vote a favor de desapropriar os ricos e bem-sucedidos? E por que os mais ricos não buscam minar o poder político do eleitor médio? São os ecos dessa tensão que agora se propagam enquanto o presidente Barack Obama busca aproveitar a fúria da classe média e o ex-governador de Massachusetts, Mitt Romney, volta-se a empresários e executivos insatisfeitos.

Um motivo para o eleitor médio racionalmente concordar em proteger a propriedade dos ricos pode ser que ele vê os ricos como administradores mais eficientes. Portanto, desde que os ricos tenham prosperado por conta própria e vencido em um mercado justo, competitivo e transparente, a sociedade pode sair-se melhor se lhes for permitido administrar e deter seus bens, com uma cobrança razoável de impostos. Quanto mais os ricos são vistos como ociosos ou desonestos (ou simples herdeiros ou, pior, que tenham acumulado fortuna de forma imprópria), mais o eleitor médio estará disposto a votar por regulações e impostos mais rigorosos que recaiam sobre eles.

Na Rússia atual, por exemplo, o direito de propriedade não goza de apoio popular generalizado, porque muitos dos oligarcas de extrema riqueza do país são vistos como tendo conquistado suas fortunas por meios duvidosos. Ficaram ricos porque se aproveitaram do sistema, não porque aproveitaram bem oportunidades de negócios. Quando o governo persegue um rico magnata do petróleo como Mikhail Khodorkovsky, poucas vozes se levantam em protesto. E, enquanto os ricos se curvam às autoridades para proteger sua riqueza, a fiscalização sobre a arbitrariedade oficial se desvanece.

Agora, vejamos um sistema competitivo, de livre iniciativa, em que há condições de igualdade de jogo para todos. Tal sistema em geral inclina-se a possibilitar que os mais eficientes conquistem mais riqueza. A justiça na competição aumenta a percepção de legitimidade.

Além disso, sob condições de concorrência justa, o processo de destruição criativa tende a acabar com a riqueza herdada mal administrada, substituindo-a por novas riquezas, mais dinâmicas. Grandes desigualdades, erigidas ao longo de gerações, não se tornam fonte de grande ressentimento popular. Ao contrário, todos podem sonhar em também ficar ricos.

Quando tais aspirações parecem plausíveis, o sistema ganha apoio democrático adicional. Os ricos, confiantes com a legitimidade popular, podem então usar a independência que acompanha a riqueza para limitar governos arbitrários e proteger a democracia. A livre iniciativa e a democracia sustentam-se entre si.

É popular a ideia de que o sistema democrático sustenta a propriedade e o empreendedorismo porque eleitores e parlamentares podem ser comprados; e que os capitalistas têm dinheiro disponível. Essa visão, contudo, provavelmente é errada. Como mostra a Rússia, a riqueza, sem apoio popular, é protegida apenas por meio de medidas cada vez mais coercivas. Em algum momento, tal sistema perde qualquer vestígio seja de democracia ou de livre iniciativa.

Voltemos, então, para a eleição presidencial dos Estados Unidos. A recente crise, seguida por imensos pacotes de auxílio a instituições financeiras, levantou dúvidas sobre a forma como, pelo menos, um setor empresarial- os banqueiros - ganha dinheiro. À medida que os pecados dos "banksters" (mistura das palavras banqueiro e gângster, em inglês) vêm à tona, o sistema deixa de parecer justo.

Além disso, o sonho americano dá a impressão de estar deslizando para fora do alcance das pessoas, em parte porque o ensino de qualidade, que parece ser passaporte para a prosperidade, é cada vez mais inacessível para muitos na classe média. Isso corrói o apoio ao sistema de livre iniciativa.

Obama sabe disso, o que explica seu interesse e foco voltado à classe média. Ele é o porta-estandarte da democracia.

Por outro lado, empreendedores e profissionais bem-sucedidos acreditam ter conquistado sua riqueza de forma legítima. Tratam-se dos ricos que trabalham e têm aversão ao aumento do peso das regulamentações e às perspectivas de impostos mais altos. Sentem como se estivessem sendo culpados por ter sucesso e ficam indignados. Romney sabe que a força dos EUA depende pesadamente da livre iniciativa.

Normalmente, não haveria grande disputa quanto a essas questões. O peso dos votos da classe média faria valer sua força. A classe média, contudo, está dividida: alguns querem proteger os direitos e bens que já possuem, enquanto outros querem que o governo lhes confira chances mais justas. Além disso, a decisão da Suprema Corte em 2010, no caso que ficou conhecido como "Cidadãos Unidos", permitiu doações políticas ilimitadas por empresas, sindicatos e outras organizações, o que vem ajudando mais a Romney do que a Obama.

Seja qual for o resultado das urnas, a tensão entre democracia e livre iniciativa, que é central na eleição, não convém a ninguém. Um sistema de livre iniciativa que seja sustentado apenas pelo poder do dinheiro dos bem-sucedidos não é estável e é improvável que mantenha sua energia por muito tempo.

Os Estados Unidos precisam restaurar a possibilidade de se alcançar o sonho americano por sua classe média, mesmo enquanto ratificam seu histórico de pouca regulamentação e encargos com impostos relativamente baixos, que permitiu a prosperidade das empresas. A virtude da democracia é que o debate pode levar exatamente a esse consenso. Apenas nos resta torcer.

Raghuram Rajan foi economista chefe do FMI, é professor de Finanças na School of Business, da Universidade de Chicago e autor de Fault Lines: How Hidden Fractures Still Threaten the World Economy (linhas de fraturas: como falhas ocultas ainda ameaçam a economia mundial. Copyright: Project Syndicate, 2012.