Título: Eficaz, índio vira "pau para toda obra"
Autor: Scaramuzzo, Mônica
Fonte: Valor Econômico, 18/10/2006, Especial, p. A16

Bilíngue, o índio Justino Alvado, 42 anos, até que se vira bem em português, mas fica mais à vontade quando se expressa em guarani. Mais articulado que seus companheiros da tribo, que trabalham com ele no mesmo canavial de uma fazenda em Rio Brilhante, Alvado diz que colher cana foi a alternativa que encontrou para ganhar dinheiro. Quando finalmente foi chamado para trabalhar no canavial, deixou em sua aldeia em Amambai, na divisa com o Paraguai, mulher e cinco filhos.

Em sua aldeia, afirma Alvado, vive-se de cesta básica, caça e pesca e não há opção de emprego. Para trabalharem como cortadores de cana, os índios têm um contrato temporário mais curto do que o dos migrantes nordestinos, por exemplo - que normalmente dura toda a safra (de maio a dezembro) e muitas vezes inclui também o período de plantio da cana.

Para os índios, o Ministério Público do Trabalho exige que o compromisso tenha a duração de 70 dias, com interrupção de pelo menos uma semana para que eles possam voltar a sua aldeia de origem. O intervalo é obrigatório para que os trabalhadores não percam o vínculo com suas raízes.

Apesar da restrição, a mão-de-obra indígena é considerada mais eficaz nos canaviais. Segundo um fiscal de cortadores de cana, os índios são "pau para toda obra", trabalham em dias de sol e chuva e apresentam bons índices de produtividade. A constatação é verdadeira, e vale também para os migrantes nordestinos. O Valor visitou canaviais da região. Não havia interrupção durante as chuvas. Os ônibus que transportavam os índios tinham lonas; o dos cortadores nordestinos, não.

As condições de trabalho nos canaviais do Mato Grosso do Sul são alvo de freqüente fiscalização da Procuradoria do Trabalho do Estado. Com a expansão da atividade sucroalcooleira no Estado, os grupos que pretendem se instalar na região e os que por lá já estão têm sido convocados pela Procuradoria para discutir as condições de trabalho da mão-de-obra indígena e dos migrantes nordestinos, os braços que movem a maior parte dos canaviais do Estado.

"O trabalho do índio tem de ser diferenciado. Eles não podem mexer com insumos, por exemplo", diz o coordenador da Comissão Permanente das Condições de Trabalho do Estado, Maucir Pauletti.

Para o índio, cortar cana é muito fácil, diz Cecílio Vera, da aldeia de Pirajuí, que foi contratado para cuidar de um alojamento indígena em Rio Brilhante. O Valor visitou o alojamento. Feito de alvenaria, tinha beliches e um banheiro para cerca de dez pessoas, e estava localizado praticamente no meio dos canaviais. Para se locomover, somente com automóvel.

Vanderlei Villalva, 24 anos, está em Itaquiraí, próximo a Naviraí, há um ano. É cortador de cana desde os 19 anos. Ganha cerca de R$ 600 mensais. É menos da metade do que ganha José Rocha Rodrigues, 22 anos, conhecido como Caju. Mais eficiente, Caju nasceu em Anajatuba, no Maranhão. Sua média diária de corte de cana chega a alcançar 14 toneladas. "Volto todo ano para o Nordeste para levar dinheiro para minha família".

Os migrantes nordestino são recrutados em suas cidades e ficam sabendo das oportunidades no "boca a boca" que parte de parentes e amigos que trabalham com cana. Em uma das visitas aos canaviais de Naviraí, a reportagem conversou com um cortador nordestino que teve seu dedo arrancado pelo "podão" (facão) naquele mesmo dia. O trabalhador, que preferiu não se identificar, havia sido medicado, mas voltou para o canavial para esperar o ônibus que o levaria até sua casa. Ele iria ficar por lá ainda por cerca de seis horas.

O cortador pernambucano Francisco Carlos da Silva, 34 anos, o "Boca de Ferro", diz que constantemente tem cãibras na boca do estômago, mas não pára. Ele revela que ganha por volume cortado e que não pode parar. Seu salário é de R$ 700 mensais - boa parte destinado à família, em Trindade.

As usinas ao oeste do Mato Grosso do Sul foram alvo de denúncias nos últimos meses por condições insalubres de trabalho, alojamentos precários e maus tratos com mão-de-obra indígena e nordestina, segundo a Procuradoria do Trabalho do Estado. O cerco a essas usinas está se fechando, e a Procuradoria avisa que vai checar nos próximos dias as denúncias. (MS)