Título: Desafio: o Banco Central e o crescimento do país
Autor: Braga, Roberto
Fonte: Valor Econômico, 07/02/2007, Opinião, p. A14

O Brasil é um país que tem ainda desafios ingentes a enfrentar. Alguns, muito graves. A redistribuição de rendas e de direitos, finalmente iniciada como programa de governo há quatro anos - e reafirmada agora, neste início de segundo mandato, como prioridade principal - exige tempo e continuidade e, por isso mesmo, exige vontade política organizada e pertinaz para enfrentar as forças contrárias, muito poderosas. Entre essas, há as mais conservadoras, que rejeitam qualquer intervenção estatal, e pensam que o melhor é deixar livre a ação do "mercado" que acabaria fazendo justiça na distribuição; e há os progressistas, empresários que querem expandir seus negócios, e aproveitar estes tempos de bonança da estabilidade monetária para reclamar a retomada do velho modelo concentrador de crescimento com "sopro inflacionário", baseado na poupança forçada paga pelos assalariados através de velha conhecida, a inflação. É conhecida a lógica do modelo, que começa com um "sopro" e inapelavelmente o transforma em vento e tempestade. E o processo de redistribuição que vá pro brejo. Os brasileiros já conhecem este que foi o nosso modelo de crescimento do início dos cinqüenta ao fim dos setenta, quando o Brasil foi campeão mundial de crescimento econômico, para se transformar, a partir dos oitenta, no campeão mundial da concentração e da injustiça social, título que chegou ao máximo na virada do século, com o crescimento zero do neoliberalismo. Chega.

Bem, mas é preciso crescer, sim, eis um consenso nacional - a própria redistribuição o exige. Eis, entretanto, também, o desafio mais complicado e de confrontação mais urgente.

As nações enfrentam seus desafios com a mobilização e a convergência de esforços do Estado, do governo e da sociedade. Mas a nossa sociedade, sabemos bem, é profundamente dividida em interesses, atitudes e em opiniões, em decorrência desta mesma desigualdade, que tem raízes muito antigas, lá no tempo da escravidão, e que é preciso reduzir substancialmente. Nosso Estado, no Legislativo, e também no Judiciário, mostra esta mesma divisão de opiniões e de comportamentos, refletindo o quadro da sociedade. Só o Executivo, o governo, principalmente num sistema presidencialista, pode assumir posições políticas explicitamente favoráveis aos interesses e às opiniões de uma parcela da sociedade - no caso, a parcela injustiçada, maior em número, mas não em poder - e fazê-lo sem radicalismos, sem pretensões revolucionárias. E pode obter resultados importantíssimos no caminho dessas políticas de favorecimento explícito, legítimo, aberto, democrático. Este é um irrecusável compromisso do Executivo.

Nessas condições, dentro do governo, diante de um desafio tão grande, de uma prioridade tão explícita, não pode haver senão uma convergência total de esforços. Onde eu quero chegar? Não há esta convergência total no governo Lula? Não; não há, há uma lacuna grave; falta uma peça primordial : o Banco Central.

O Banco Central tem sido independente do governo. Conheço essa velha lógica: o Banco Central não pode se submeter à política e o governo é eminentemente político, logo o Banco Central tem que ser independente; é assim nos países mais adiantados. Pois bem, é assim, pode ser assim nos países que não enfrentam desafios como os nossos. No Brasil de hoje, o Banco Central não pode ser independente. Tem que ser uma peça bem integrada no governo; que trabalhe e atue junto e uníssono com o governo, e uma peça essencial, importantíssima. Não pode ficar cuidando só da moeda e não tomar conhecimento do resto. Se o Brasil estivesse em guerra (só hipótese, evidentemente), o BC nem quereria saber disso, continuaria só cuidando da moeda.

-------------------------------------------------------------------------------- Nosso Estado, através do Legislativo e Judiciário, mostra essa divisão de opiniões, o que é refletido no quadro da sociedade --------------------------------------------------------------------------------

O cuidado com a moeda é fundamental, é um direito do povo e também uma prioridade do governo, até porque da estabilidade dos preços depende a eficácia dos programas de redistribuição. A estabilidade monetária tem que ter um cuidado rigoroso de todo o governo; não apenas do BC. Mas o BC, ele também, tem que ter compromisso firme com todas as outras metas e prioridades do governo. E se o governo estabelece como meta, como prioridade, crescer a 5%, o BC tem que participar e colaborar, não pode atrapalhar, seguir em frente como se nada tivesse com todo o resto, como se fosse parte isolada do todo, como vem fazendo. Pode, sim, e deve, participar do debate e da fixação das outras metas. Pode eventualmente dizer e mostrar que não é possível crescer a 5% , sob pena de comprometer a necessária estabilidade. Pode e deve fazer baixar a meta para 4,5% ou para 4%, mas tem que se comprometer com ela e agir com empenho segundo este compromisso.

Este é um ponto decisivo, a meu juízo. O Banco Central tem agido como instância independente e isso não pode continuar. Banco Central independente é coisa de país rico que não enfrenta desafios. Aqui, BC, Copom e companhia, têm de ser entes do governo, integrados com ele, não podem ser independentes, isto é, entes do mercado, como têm sido.

Aliás, com vistas a uma mudança de orientação do BC, não é bom que sua diretoria seja, toda ela, composta por técnicos que são verdadeiros representantes de mercado, como têm sido - técnicos que atuam no tal mercado e que, findos seus mandatos, retornam ao mercado. É importante acrescentar diretores oriundos da academia, do serviço público (eventualmente do próprio BC) e de setor privado não especificamente financeiro.

Trata-se de uma condição para se ter um Banco Central do Executivo, escolhido democraticamente pela sociedade, em lugar de um banco que seja do mercado, estranho às questões e propostas do governo e vinculado aos seus interesses próprios, que nem de longe são os da sociedade brasileira.

Roberto Saturnino Braga é ex-senador da República.