Título: A ética econômica tem carta para dar
Autor: Andrade, Cyro
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2006, EU & Fim de Semana, p. 4

Descontado o apego natural dos políticos ao seu capital eleitoral, as esquivas de Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin à revelação de possíveis cortes orçamentários em seus eventuais governos sintetizam um dilema já bastante antigo: seria o caso de se resguardarem arranjos de distribuição de poder econômico e político estabelecidos, ou deve-se construir um novo edifício de relacionamento social? Da segunda escolha fará parte a reestruturação das contas fiscais, que são o que são, e travam o crescimento econômico, por conseqüência de decisões tomadas ao longo do tempo pela própria sociedade brasileira. Governos, sozinhos, não decidem sobre como se devem distribuir os recursos com os quais a economia do país funciona e o poder político se explica. Em questões como essas, refletidas em indicadores de desigualdade de renda e de outros tantos tipos, o que se discute, afinal, são os posicionamentos éticos de toda a sociedade - de governos, inclusive.

"A sociedade brasileira tem uma certa preferência por alta desigualdade. É uma preferência revelada", diz o economista Marcelo Côrtes Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais do Ibre/FGV e professor da EPGE/FGV. "É uma opção. Desigualdade tem a ver com relações humanas. E nós temos relações humanas desiguais." Neri também observa que "temos uma certa dificuldade para lidar com conflitos, como no tempo em que se tolerava a inflação" - que é uma expressão de conflitos na disputa por renda. Foi-se a inflação dita galopante, restaram conflitos variadíssimos, empurrados para dentro daquilo que alguém chamou de agenda perdida.

O fato é que "a persistência da desigualdade no Brasil está diretamente associada à naturalidade com que é encarada, como se não fosse a decorrência de um processo histórico específico, ou uma construção econômica, social e política deliberada", dizem os autores do relatório "Desenvolvimento com Justiça Social: Esboço de uma Agenda Integrada para o Brasil", publicado pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade em 2001 (mas nem por isso datado). Acrescentava-se que a naturalidade com que se vê a desigualdade está fincada em raízes históricas profundas, ligadas à escravidão e à sua abolição tardia, passiva e paternalista; e também no caráter inicialmente elitista (República Velha) e depois corporativista (era Vargas) de parte considerável do período republicano. Enfim, esta desigualdade brasileira "resulta de um acordo social excludente, que não reconhece a cidadania para todos, em que a cidadania dos incluídos é distinta da dos excluídos e, em decorrência, também são distintos os direitos, as oportunidades e os horizontes."

Oportunidade é palavra-chave nos assuntos do desenvolvimento de um país, sempre disse o bengalês Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia - não aquela, porém, que seja apenas concedida, ou que venha pelo acaso, mas que cada um possa construir por si mesmo, com a liberdade assegurada pela capacitação que a sociedade, por suas políticas públicas, tenha lhe proporcionado. A moldura dessas possibilidades será dada pela ética aplicada à economia. E aí é preciso avançar. "A natureza da economia moderna foi substancialmente empobrecida pela distância que cresceu entre economia e ética...[a economia] pode ser mais produtiva se prestar maior e mais explícita atenção às considerações éticas que moldam o comportamento e o julgamento humanos", afirma Sen ("On Ethics and Economics" - Oxford/Basil Blackwell, 1987).

As idéias de Sen são presença constante no agora publicado "Ética e Economia - Impactos na Política, no Direito e nas Organizações" (Campus/Elsevier), de Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, professor da Escola de Economia de São Paulo, da FGV.

"Amartya Sen recupera a importância do estudo da ética em economia. Ele nota que, desde a virada do século XIX até o fim do século XX, há uma separação entre economia positiva (que trata de como o mundo é e funciona) e economia normativa (que trata de como o mundo deve ser)." Tal separação foi importante para que a economia positiva evoluísse como disciplina. O problema é que as origens da economia são dadas pela filosofia moral (a ética) e, portanto, diz Sen, é preciso cultivar a convergência entre economia positiva e economia normativa, de modo que disso decorra, explica Gonçalves da Silva, "uma reavaliação do pressuposto de racionalidade em economia; uma conseqüente reavaliação sobre a relação entre auto-interesse, egoismo e altruísmo; e, por fim, uma reconsideração de como os resultados derivados da teoria econômica positiva podem definir o cenário sobre o qual as proposições normativas e éticas podem ser feitas".

Sen fala de escolhas, que são políticas também, mas recomenda aquelas, indissociáveis de sua proposta de melhor distribuição de oportunidades, que ponham foco sobre as necessidades de quem mais precisa. Se não, como se reduziriam as desigualdades de capacitação que tolhem a liberdade nas escolhas individuais?

Nelson Perez/Valor Marcelo Neri: "A sociedade brasileira tem certa preferência por alta desigualdade, que tem a ver com relações humanas; e nós temos relações humanas desiguais" "É preciso distribuir educação de forma mais igualitária, por exemplo, assim como o acesso à saúde, ao saneamento básico. Enfim, é necessário aplicar politicas de ação afirmativa, que se colocariam por trás dos gastos públicos, para se gastar mais com os que têm menos" - diz Gonçalves da Silva. "No Brasil, hoje, gasta-se mais com quem tem mais. Então, trata-se de não universalizar gastos, mas de focalizar sua distribuição. Alguém poderia ver aí um conceito reacionário. Errado. Se focalizo, gasto mais com quem tem menos. Reacionário é gastar a mesma coisa com todo mundo, independentemente de suas necessidades."

Serenaram-se conflitos típicos de ambientes inflacionários, dos tempos em que os preços variavam em porcentagens acumuladas por unidade de milhar. Caíram privilégios distributivos embutidos em índices galopantes. Sobraram iniqüidades de toda ordem. Mas a estabilização tornou-se uma realidade cotidiana e viu-se, assim, que é possível fazer rearranjos econômicos e sociais importantes, inclusive em termos de distribuição de renda e riqueza. A gravidade da crise de confiança na moeda, com todos os seus efeitos de desagregação social, foi o grande estímulo para o entendimento tácito que desembocou no Plano Real.

O Brasil estaria vivendo hoje uma situação crítica parecida, agora alimentada por constrangimentos, a começar pelos fiscais, que impedem o crescimento econômico necessário para a viabilização de políticas de combate às desigualdades? Sob quais condições seria possível fazer as mudanças institucionais, pró-desenvolvimento, que complementariam a estabilização econômica iniciada há 12 anos?

"Vamos depender de um conchavão histórico-patriótico", diz José Eli da Veiga, professor titular do departamento de economia da FEA/USP. Alguma coisa parecida com o que se fez no Chile, a "concertação" de que fala o ministro Tarso Genro. Como a palavra não existe em português ("É uma chilenice"), mas a idéia lhe parece interessante, Veiga optou por "conchavo", mesmo admitindo que o significado da palavra, em si, não é dos mais refinados.

Veiga enxerga a possibilidade do "conchavo", mas não lhe passam otimismo os resultados das eleições de 1.o de outubro, para governadores e para o Congresso. "O PMDB, essa coisa gelatinosa, continua a ter importância grande. Não há melhoria qualitativa na bancada do PT, nem no PSDB. Os outros, ou não prestam ou são muito pequenos." Na questão da reforma tributária, particularmente, a voz dos governadores será decisiva. Eles são comandantes de bancadas. Aí também Veiga não vê razões para entusiasmo. O problema maior, em sua opinião ("Se é Brahma ou Antarctica quem ganha para presidente é absolutamente secundário"), "é que não há nenhum tsunami mostrando que o país vai ter uma tragédia se as pessoas não se unirem em torno de algumas coisas óbvias". Mas "é uma tragédia, sim, o que tucanos e petistas estão fazendo, isso de dinamitar pontes que possibilitariam um entendimento entre eles, porque aí estaria uma solução".

Tancredo Neves pensava num acordo por cima de interesses partidários, que serviria para cicatrizar feridas abertas por dissensões políticas que seriam desastrosas para a redemocratização, mas que também poderia, quem sabe, encaminhar soluções para os problemas econômicos da época. Desse entendimento ele falava nos comícios pelas eleições diretas, e falaria durante a campanha para a Presidência da República.

O Brasil entrava num período de desempenho econômico repleto de atribulações e volatilidade, também causadas por ondas de choque vindas do exterior, e frustrações em tentativas de estabilização. Era o contexto em que se explicavam as preocupações de Tancredo e suas idéias de conciliação, que, de certo modo, acabaram desaguando na Constituição de 1988 - um grande passo como arranjo político e na instituição de direitos sociais, mas de difícil digestão econômica, por seu viés distributivista descolado da disponibilidade de recursos para distribuir. Como resultado, acabaram se institucionalizando distorções de contabilidade fiscal inibidoras do crescimento econômico.

-------------------------------------------------------------------------------- José Eli da Veiga propõe "conchavão histórico-patriótico", como se fez no Chile, e lamenta que PT e PSDB prefiram "dinamitar pontes" --------------------------------------------------------------------------------

Mesmo assim, iriam abrir-se caminhos para a redução da pobreza. Um avanço, do ponto de vista social, que se exprime, porém, por meio de um paradoxo.

AP O Bolsa Família poderia dar acesso a empréstimos de valor variado, com um modelo de crédito próximo ao disseminado por Muhammad Yunus (na foto, ao saber que ganhara o Nobel) O paradoxo, explica Neri, está em que, embora nos últimos 12 anos a renda média per capita do brasileiro tenha mostrado desempenho medíocre, praticamente não crescendo, a renda dos pobres aumentou. Como a pobreza pôde diminuir, então, se a renda total não cresceu?

A resposta está na redução da desigualdade, que, por sua vez, se explica do seguinte modo: os programas sociais (transferências de renda feitas pelo Estado, principalmente Previdência Social e Bolsa Família, mais recentemente) permitiram que a renda do trabalho caísse menos - tornando menor seu impacto sobre a renda total - , ao mesmo tempo que a renda dos pobres crescia.

Hoje, porém, esses mesmos programas sociais ajudam a explicar porque a renda no Brasil em geral não está crescendo muito: por que as necessidades de financiamento dos programas sociais, previdência à frente, forçam o aumento da carga tributária, pressionam os juros, inibem investimentos, tiram dinamismo do mercado de trabalho. Como resultado, vive-se uma situação em que um país que se notabilizava pela iniqüidade inercial, mas crescia muito, passou a crescer pouco e a reduzir a pobreza via redução da desigualdade. Continua-se, porém, a fazer vista grossa para a questão dos déficits crescentes da previdência, a primeira entre as armadilhas que amarram as possibilidades de crescimento econômico sustentável - e de desenvolvimento, portanto.

Essa não é, evidentemente, uma estratégia que possa ser mantida por prazo longo num país que está entre os últimos na escala de crescimento econômico. Será preciso fazer escolhas, diz Neri. É necessário pensar no futuro. Então, "se o objetivo é a redução da pobreza, uma das vantagens da política focalizada que privilegie os pobres (da qual o Bolsa Família é um instrumento) é que ela é mais barata, em termos de custo/benefício". Ou seja, o mesmo gasto fiscal com o Bolsa Família terá impacto positivo maior para o crescimento da renda dos pobres do que o derivado de gasto igual com a previdência.

Apesar das críticas que recebe (seria assistencialista, ainda que se reconheça sua importância emergencial), o Bolsa Família não parece predestinado a desaparecer tão cedo. Em áreas próximas aos dois candidatos à Presidência observa-se a intenção de preservar o programa, propósito que também chega aos palanques por meio de declarações afirmativas de um e de outro, ainda que a questão dos necessários cortes em gastos de custeio, que incluem os de natureza social, permaneça envolta em compreensíveis indefinições às vésperas da eleição.

Seja qual for a qualificação que o Bolsa Família receba na crítica das iniciativas de política social, parece ter-se estabelecido um processo. Desde sua primeira formulação, no governo de Fernando Henrique Cardoso, o programa evoluiu, foi sendo aperfeiçoado - abstração feita do tropeço representado pela opção inicial do governo Lula, que se enredou nas simplificações do Fome Zero . O próximo governo, seja quem for o eleito no dia 29, deve dar novas voltas no parafuso, seja com aumento direto de recursos, pela elevação do valor da bolsa (hoje entre R$ 15 e R$ 95), como já agora acena a área social da gestão Lula, seja mediante premiação do aumento da escolaridade condicionante do recebimento do benefício, como especulam agentes da campanha de Alckmin.

De 1992 a 2005, a miséria no Brasil caiu 54%. E o Bolsa Família atingiu mais de 11 milhões de famílias, quase 45 milhões de pessoas. Alcançadas essas duas importantes metas, diz Neri, um próximo objetivo deve ser aumentar a qualidade do Bolsa Família - garantindo que os recursos cheguem mais concentradamente aos mais pobres dos pobres, excluindo quem não for tão pobre e criando portas para saída da pobreza. "Aí, uma das vertentes mais interessantes, que defendo há tempos, é o microcrédito", diz Neri (trata-se de um conceito de extensão do crédito a pessoas pobres, especialmente para que toquem pequenos negócios, que acaba de dar o Prêmio Nobel ao economista Muhammad Yunus). Neri entende que o Bolsa Família é "um começo de jornada", que poderia ser transformado numa "plataforma de acesso dos pobres ao crédito", mediante aproveitamento das estruturas já existentes para o funcionamento do programa e compartilhamento de custos de operação já incorridos. Esse passo se juntaria a um "upgrade" do programa: os beneficiários teriam um certo grau de liberdade para solicitar quantias variáveis, de acordo com suas necessidades eventuais.

Ao mesmo tempo, é claro, seria preciso fazer uma opção clara pelo desenvolvimento tornado possível com arrumação definitiva das contas públicas, além das reformas microeconômicas que ainda resta fazer. O contexto para a instalação desse processo de mudança continuaria marcado por um outro paradoxo, este lembrado por José Eli da Veiga: dominou-se a inflação, a vulnerabilidade das contas externas caiu verticalmente, graças aos ventos muito favoráveis da conjuntura internacional, mas se cresce pouco. "Hoje, é mais difícil crescer, exatamente porque se criaram instituições civilizatórias, cuja ausência, anos atrás, facilitava aquele crescimento da fase selvagem, em que não havia regras para duas coisas básicas: a exploração do trabalho humano e a exploração dos recursos naturais." Isso mudou.

Mas também seria preciso rever certas instituições que criam obstáculos ao crescimento, as primeiras de todas sendo as que fazem os alicerces atuais da previdência social. "Por que ninguém quer falar em reformar a previdência? Por que ela vai retirar direitos adquiridos. E aí é uma discussão difícil, por que se trata de retirar direitos dos velhinhos. O Brasil é o país que se notabiliza, em qualquer comparação internacional, por ter pouquíssima pobreza na faixa dos idosos. Essa é, então, uma instituição que se deve valorizar. Proteger a velhice é uma coisa boa. Mas a conta não fecha. Vai ser preciso fazer uma reforma. Direitos terão que ser diminuídos."

Crescer é preciso, mas se o crescimento não tiver o tamanho que se pretenda, isso não poderá ser argumento para se deixar de investir em áreas sociais básicas, como saúde e educação. A advertência faz parte do pensamento de Amartya Sen, lembra Veiga. Até porque, ele justifica, uma das vantagens de um país que não está entre os mais desenvolvidos é que são menores os custos para essa espécie de gasto.

Não faltam exemplos, em várias partes do mundo, de que aquela conciliação aparentemente paradoxal de meios e fins, como é proposta por Sen, é possível e pode dar bons resultados, como se vê na Índia, no Ceilão, na China. Veiga observa, a propósito, que coisa parecida já aconteceu no Brasil. Aqui, o desenvolvimento, medido pelo Índice de Desenvolvimento Humano - média aritmética de renda, expectativa de vida e grau de acesso à educação -, foi proporcionalmente maior, nos últimos 25 anos do que se poderia imaginar pela taxa de crescimento".

Também tem havido perdas, no entanto, causadas pela permanência de instituições que geram incentivos ruins para os agentes econômicos, que se vêem envolvidos, então, numa "interação estratégica" que acaba sendo prejudicial para toda a sociedade, diz Gonçalves da Silva. Não se percebe de pronto o que acontece, mas todos perdem com a carga tributária excessiva, com a estrutura de tributos, com o sistema político que favorece a corrupção. É o mesmo ambiente de anomia, vazio de normas, em que a racionalidade econômica cede lugar a escolhas que estilhaçam restrições éticas pisadas por ações de governo que ignoram a escassez de recursos e o princípio da eficiência em sua aplicação.

A ética econômica trata de como se pode avaliar, no sentido de ser bom ou mau, correto ou incorreto, justo ou injusto, vários ordenamentos econômicos alternativos. Essa ética, diz Gonçalves de Oliveira em seu livro, "envolve a valoração e o ordenamento dos meios (instituições formais e informais) e a valoração e a ordenação dos fins (resultados das ações dos agentes que se deparam com incentivos criados pelas instituições) em termos de eficiência e justiça".

Parece difícil situar tão severos preceitos de ética econômica em nível superior ao da miséria ética que se tem espalhado em áreas por onde devem transitar formulações e decisões de políticas públicas, que constituem terrenos de domínio do sistema político. Também aqui, contudo, cabe à sociedade fazer suas escolhas, para chegar à conciliação necessária entre princípios econômicos e políticos.