Título: A primeira vez que ouvi Noel
Autor: Giron, Luís Antônio
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2006, EU & Fim de Semana, p. 16

Passei parte de minha vida a ouvir as pessoas que conheceram Noel Rosa (1910-1937). Falei com muita gente, entre músicos, parentes e amigos - para não mencionar os pesquisadores que se dedicaram à grande obra do compositor carioca. No começo, fui levado pelo amor que devotava pelo samba humorístico e filosófico daquele que usou o slogan "o Bernard Shaw do samba". Com o tempo, as conversas ganharam tom mais profissional, porque vim a elaborar a biografia de outro ídolo, o cantor Mario Reis (lançada em 2001 pela editora 34). O fato é que bati papo, anotei, escutei com toda essa gente as gravações antigas, folheei os álbuns de recortes e de fotografia, remexi em lembranças nem sempre alegres. Essas emoções nostálgicas - nostalgia é a saudade do que o sujeito jamais viveu - vêm à tona com a reedição da caixa de CDs "Noel pela Primeira Vez" (Velas-Funarte). Em 14 discos, divididos em sete volumes, a edição traz todas as primeiras gravações de músicas de Noel. Ao todo, 229 músicas, registradas entre 1928 e 1997 por diversos intérpretes, inclusive o próprio compositor.

O material precioso foi remasterizado e organizado no ano 2000 pelo médico paulistano Omar Jubran. É um trabalho de amador, e uso aqui o duplo sentido de não-profissional e apaixonado. Esforço admirável, apesar dos erros (pequenos) de grafia e nos versos, e que se repetem na reedição. O livreto que acompanha a embalagem traz dados esquemáticos das gravações. Não há rigor na transcrição das informações dos selos originais, uma obrigação de todos que trabalham na área. Sinto a falta de um texto denso sobre o legado fonográfico de Noel.

Na segunda edição, é reproduzido o artigo de João Máximo publicado no Valor em 2000. Seria melhor ter encomendado um ensaio a João Máximo e Carlos Didier, biógrafos de Noel. Mas resmungo na condição de crítico - e de barriga cheia. Considero Jubran (que ainda não tive o prazer de encontrar) um herói por ter realizado o monumento noelino. Quem gosta de música popular experimenta uma iluminação diante do material de "Noel pela Primeira Vez". Até porque, para a maior parte das pessoas, é mesmo a primeira vez.

Meu caso é diferente, pois parte do que está nessa edição parece que conheço pessoalmente. A nostalgia pode ser um sentimento que nos empurra a entrar em contato com os fragmentos do passado que não vivemos - e tentar, assim, curtir as sensações que não foram vivenciadas. Um repórter pode fazer isso procurando testemunhos. Foi assim que agi. E talvez minha experiência ajude a soprar mais um pouco de vida às gravações remotas. Aqui vão um pouco de minhas aventuras.

Procurei o grande cantor Jonjoca, o João de Freitas Ferreira, hoje com 96 anos. Em seu apartamento na Gávea, no Rio, ele se alongou nas noitadas boêmias em que ele cantou com o "poeta da Vila", ao lado de Carmen e Aurora Miranda, Custódio Mesquita e Paulo Trepadeira - um cantor menos famoso pela voz do que pelo tamanho (e que lançou dois sambas de Noel em 1931). Jonjoca me revelou como gravou meia dúzia de sambas de Noel, inclusive o clássico "Adeus", ao lado de Castro Barbosa.

Sílvio Caldas, o "caboclinho querido", ainda cantava em 1990, numa boate do centro de São Paulo, quando fui entrevistá-lo. Ele entoou a marcha-rancho "Pastorinhas", parceria de Noel e João de Barro, que lançou em dezembro de 1937, com acompanhamento da Orquestra de Napolão e seus Soldados Musicais (na edição da Velas, é possível descobrir que a música teve versão anterior, intitulada "Linda Pequena", gravada em 1934 por João Petra de Barros, sem ter obtido sucesso).

Sílvio Caldas falava sem parar, atuava como memória viva (sucedeu-lhe Mário Lago, com quem conversei também sobre Noel), cargo que hoje ninguém ocupa, até porque ninguém mais se importa com a memória do outro, nem se lembra de lembrar. E lá estava Sílvio, com toda a memória a lhe calçar a autoridade. Com gestos largos e voz alta, me disse como gravou em 1931, para a Victor, o samba "Mão no Remo", de Noel e Ary Barroso. Silvio me falou do jeitão escrachado de Francisco Alves quando os dois gravaram o samba "Vitória" em 1932.

Nessa gravação maravilhosa, Silvio evocava o canto dividido de Mario Reis, que fazia sucesso na época, cantando num staccato meio falado que não era seu modo original. "Chico falava cuspindo", riu Sílvio. "E, nesta gravação, ele se superou, procurando dividir como o Mario." Sim, porque Sílvio e Chico cantaram à maneira de Mario Reis, cujo modo revolucionário ele aprendeu de Sinhô, o "rei do samba". "Sinhô era um mulato grandão, mas tinha tuberculose e cantava sem fôlego", afirmou. Então a tuberculose virou um estilo de cantar, Sílvio? O cantor ria. De fato, Mario Reis assina as melhores interpretações de Noel, ao lado de Francisco Alves e Aracy de Almeida. Mario traduziu aquilo que Noel entoava como projeto. Basta ouvir as músicas que Mario lançou nos anos 1930: "Quando o Samba Acabou", "Filosofia" e "Rapaz Folgado". São gemas do canto moderno. Pena eu ter começado no jornalismo um ano depois da morte de Mario Reis e não o ter entrevistado.

Num dia de 1999, fui à casa de João de Barro, o Braguinha. Ele também cantou "Pastorinhas", com a voz límpida de tenor. Revelou que Noel e ele eram fãs de Mario Reis quando começaram a carreira no Flor do Tempo, no fim dos anos 1920. Descreveu a fábrica de tecidos da Vila Isabel, que pertencia a sua família e que, hoje abrigando um supermercado, segue inteira no samba "Três Apitos", gravado por Aracy de Almeida em 1951. Aurora Miranda recordou o amigo e forneceu minúcias sobre como registrou em 1934, na Odeon, o samba "Boa Viagem". E disse que Noel era um bom rapaz, apesar das traquinagens da vida boêmia.

Com suas recordações, contadas em 1986, a cantora Marília Baptista me abriu o estúdio da Odeon no início de 1936, ela e Noel gravando "De Babado" e "Cem-mil Réis", acompanhados pelo regional de Benedito Lacerda. Marília, de voz grave mas interpretação limitada, foi uma das cantoras responsáveis pelo revival de Noel nos anos 1940 e 1950. Em 1940, ela lançou o clássico "Silêncio de um Minuto".

A principal responsável pela glória póstuma de Noel foi Aracy de Almeida. Ela eternizou os clássicos da fase final e depressiva do compositor, como "Último Desejo" e "Triste Cuíca". Em outubro de 1988, passei com Aracy uma tarde no salão do Marian Palace Hotel, no centro de São Paulo. Ela mandou trazer do quarto um toca-disco surrado - e ambos ficamos lá a ouvir um LP com gravações na voz de Noel, enquanto ela, com lágrimas nos olhos, tentava ser engraçada. "Noel era do balacobaco!", murmurou. E me contou episódios de travessuras juvenis, nem sempre bem-comportadas.

Comentou que Noel foi um dos primeiros compositores a gravar suas próprias músicas. "Mas fomos nós, os cantores, que levamos a obra dele adiante." Aracy tinha razão. Apesar de ter gerado uma linhagem brilhante de compositores que foram influenciados por seus versos realistas e irônicos (veja na página 17), os intérpretes sustentaram a nota e a tradição das canções de Noel.

Assim conheci detalhes pessoais e musicais de Noel por meio das lembranças dos outros. Então, embora eu tenha sido apresentado a ele muito antes pelos LPs dos anos 1970 e pelos 78 rotações que havia na casa dos meus avós, a impressão que eu tenho é de que Noel está muito próximo, que é um amigo antigo. A impressão só é corroborada quando agora ouço e volto a ouvir "Noel pela Primeira Vez".

As gravações antigas ajudam muito nessa operação de viagem no tempo. Elas tornam presentes e reais os sons remotos e ignorados. Basta fechar os olhos para imaginar os seres que estão por trás dos alto-falantes, diante de um microfone que adquire formas diversas à medida que a tecnologia progride. O tempo também passa para o ouvinte nostálgico.

Na juventude, Noel me parecia um sujeito abusado, que morreu aos 26 anos, mas eu tinha idade menor que ele, então não tinha mesmo a idéia do que fosse morrer cedo. Hoje, Noel me soa como um menino prodígio, ainda abusado, mas um jovem frágil que amadurecia aos trancos, até a tuberculose matá-lo. As gravações vão descortinando a passagem do humor escrachado à ironia e desta até a amargura e a desilusão - que não deixam de ser desdobramentos do "humour". A lição maior de Noel: humor não é comédia, mas tragicomédia. Nunca fomos tão amigos.

Luís Antônio Giron, jornalista, é autor de "Mario Reis" (editora 34), "Minoridade Crítica" (Edusp), entre outros.