Título: Apesar da retórica igualitarista na China, camponeses vivem na miséria
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2006, Internacional, p. A10

É o fim de uma boa colheita de maçãs na vila de Dagucheng, mas as pessoas não estão celebrando. Mesmo depois de o governo central ter acabado com um antigo imposto sobre a agricultura, a gente do vilarejo na pobre Província de Hebei, 80 km ao norte de Pequim, diz que não haverá melhoras. Uma decisão recente do Partido Comunista de construir "uma sociedade socialista harmoniosa", na qual os camponeses prosperariam e a corrupção seria menor, foi recebida com ceticismo na vila.

Desde os tempos de Mao Tsé-tung, é raro que a liderança do partido declare formalmente um objetivo tão utópico quanto o do dia 11 de outubro, prometendo construir uma China harmoniosa.

Para o presidente Hu Jintao, cujos discursos, desde que assumiu a liderança do PC chinês quatro anos atrás, têm sido cheios de clamor por harmonia, a adoção do documento pelo Comitê Central do partido foi um importante rito de passagem. O próximo passo, possivelmente no ano que vem, durante o congresso qüinqüenal do partido, deve ser reescrever o programa do PC, transformando a harmonia em um de seus objetivos. Hu vai se tornar oficialmente então um dos maiores "pensadores" do partido, junto com Mao, Deng Xiaoping e com o predecessor do próprio Hu, Jiang Zemin.

O texto do documento, publicado anteontem, prescreve várias maneiras de tornar a China harmoniosa. Elas incluem a promoção de uma reforma política e a luta contra "forças hostis", tanto domésticas quanto externas. Outro elemento, dizem as autoridades, será a criação de uma "nova sociedade socialista", distinta da de hoje, na qual a corrupção floresce, a educação e a saúde estão se tornando proibitivamente caras e a renda vai caindo. A única atividade não relacionada à agricultura em Dagucheng, uma fábrica de latas, faliu há alguns anos. A renda anual média dos camponeses continua a mesma - cerca de US$ 250 - do começo da década.

Desde que o partido se comprometeu no ano passado a reformar o campo, é difícil identificar mudanças substanciais. Em alguns vilarejos perto de Dagucheng, as estradas foram repavimentadas. O fim do imposto agrícola significou uma economia de US$ 12 em média para cada camponês por ano. No ano que vem, as mensalidades na escola primária de Dagucheng (US$ 25 por ano) devem ser abolidas - isso é parte de uma campanha nacional para acabar com essas mensalidades nas áreas rurais para os primeiros nove anos de educação. Mas, como em muitas escolas rurais, a de educação primária de Dagucheng está cortando custos e contratando cada vez mais professores subqualificados. Os habitantes do vilarejo não sabem se poderão contar com os benefícios de um novo programa de saúde que o governo diz que estará disponível para 80% das áreas rurais até 2008. Por enquanto, eles têm de pagar preços de mercado nas clínicas privadas da vila. Mas, mesmo quando o programa começar a funcionar, eles ainda terão de pagar de 35% a 60% dos custos.

Li Fan, um consultor de Pequim, diz que o fim do imposto agrícola foi um desastre para as finanças dos governos locais, apesar dos aumentos dos subsídios por parte do governo central. Ele diz que uma pesquisa feita em Hengyang, um distrito da Província de Hunan, no centro do país, mostra que os governos estão cortando os repasses de subsídios, para tentar colocar seus orçamentos em ordem. Li acha que os ganhos que os camponeses vêm conseguindo devem ser prejudicados por medidas assim.

Mas o Comitê Central estabelece objetivos ambiciosos. O ambiente deve se tornar "bastante melhor". O crescente fosso entre as áreas rural e urbana tem de ser diminuído. A riqueza tem de ser distribuída mais igualitariamente. As aposentadorias devem estar disponíveis para todos, não apenas para os residentes nas cidades. A imprensa estatal chegou a louvar os sistemas de bem-estar social dos países do norte da Europa, usando-os como exemplo a ser seguido. Já há até mesmo uma data para que a harmonia seja alcançada na China: o Comitê Central marcou para 2020.

Hu parece estar preocupado com as questões de bem-estar social. Os conservadores do PC estão cada vez mais críticos em relação às desigualdades geradas pelo rápido crescimento da China. E vêm acontecendo cada vez mais protestos populares contra problemas como corrupção e desapropriação de terras agricultáveis pelos governos locais. Hu pretende consolidar seu poder e começar a tratar da sucessão no poder no congresso do partido no ano que vem. Para fazer isso, ele precisará, de algum modo, começar a tratar esses problemas.

Mas a China não deve mudar de curso dramaticamente. Hu pode gastar mais tempo tratando de assuntos relativos ao campo, à saúde e à educação graças ao grande aumento da arrecadação do governo. Ele e outros líderes partidários continuam focando o maior objetivo do PC chinês: manter a estabilidade social. Mesmo que a corrupção, a pobreza rural e os danos ao meio ambiente ameacem isso, os líderes partidários continuam mais preocupados quanto ao perigo do desemprego. O grande crescimento da China - impulsionado pelos investimentos urbanos e pelas exportações - ajudou a conter o problema. Em Dagucheng, como em muitos vilarejos rurais da China, as remessas de dinheiro dos trabalhadores que conseguiram empregos nas áreas urbanas ajudaram a aumentar o padrão de vida. Mas, neste ano, o mercado nas cidades deve criar empregos para só 11 milhões dos 25 milhões de chineses procurando trabalho.

Hu pode se reconfortar com descobertas recentes dos estatísticos do governo, em Pequim. Cerca de 47% dos residentes pesquisados disseram que a capital já se tornara uma cidade harmoniosa. E perto de 43% disseram que, "no geral", ela era harmoniosa. O "índice de harmonia" da cidade, um esforço para medir o sentimento dos habitantes de Pequim, vem crescendo anualmente a uma média de 3,1% desde 2001. O PC parece estar alcançando seus objetivos.