Título: Tolerância maior com coca na Bolívia ameaça o Brasil
Autor: Souza, Marcos de Moura e
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2006, Internacional, p. A11

Depois dos atritos provocados pela questão do gás, Brasil e Bolívia têm outro tema sensível para colocar em discussão: a coca. Desde que assumiu o governo, há nove meses, o presidente Evo Morales vem adotando medidas que flexibilizam, isto é, estimulam o cultivo da folha no país. Ele diminuiu as restrições para as famílias de agricultores sindicalizados e adotou um plano de erradicação apenas voluntária dos cultivos. O Brasil é o principal destino da droga boliviana, seguido por países europeus, e tende a ser o mais atingido pelas políticas de La Paz.

Setores do governo brasileiro e a Polícia Federal acompanham a nova abordagem boliviana com preocupação. Prevêem uma superoferta de coca e aumento do narcotráfico para o Brasil já em meados do próximo ano.

Segundo o coordenador-geral de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal, o delegado Anísio Soares, a quantidade de coca vinda da Bolívia e apreendida em solo brasileiro cresceu cerca de 100% este ano, de 1 tonelada para quase 2 toneladas. O delegado diz que ainda estuda as razões do aumento. No governo há quem interprete a expansão como reflexo não de políticas de Morales, mas de políticas pró-cocaleiros adotadas pelos breves governos que o antecederam nos últimos anos.

A Embaixada dos EUA na Bolívia diz já ter alertado Brasília para que se envolva diretamente na questão e tente pressionar Morales a impor limites mais duros aos cocaleiros, a categoria de trabalhadores rurais que o lançou como líder político. Os EUA são o principal promotor da luta antidrogas na Bolívia.

"Logo que Evo foi eleito, a produção disparou. E, como a coca demora mais ou menos 18 meses para crescer, é esperado que em meados do ano que vem haja uma grande explosão da droga", disse ao Valor uma autoridade do governo brasileiro muito familiarizada com questões da Bolívia, que pediu para não ser identificada.

A mesma fonte avalia, porém, que num momento tão delicado como o atual, marcado pela nacionalização do gás, o Itamaraty não parece disposto a adicionar mais um elemento de tensão na relação com a Bolívia. "Acho que a tendência do governo é ficar atrás das políticas antidrogas dos EUA."

A Bolívia é o terceiro maior produtor de coca do mundo (com 16% do total), atrás da Colômbia e do Peru. Seu forte não é a cocaína refinada, produzida em laboratórios, mas uma substância mais simples chamada de pasta base ou pasta de coca, usada como matéria-prima do crack e de um tipo de cocaína mais barata e menos pura.

A pasta - que tem uma consistência dura e um tom amarelecido - entra no Brasil geralmente por via terrestre, pela Bolívia ou pelo Paraguai, escondida geralmente debaixo de cargas ou em fundos falsos dos caminhões, diz Soares.

Ainda no governo do presidente Carlos Mesa, que renunciou em 2005, a política boliviana para a coca começou a ser modificada. Sob um clima de instabilidade política, que já havia custado a deposição presidente Gonzalo Sanchez de Lozada, em 2003, o governo atendeu à pressão de cocaleiros, liderados por Morales, permitindo a cada família de produtores da região do Chapare cultivar uma área de 40 metros por 40 metros (chamado de um cato) de coca.

Ao ser eleito, Morales - que, a despeito de críticas, ainda preside a federação nacional dos plantadores de coca -- aprofundou esta concessão. Em vez de permitir um cato por família, passou a permitir um cato por integrante de cada família. A regra vale agora não só para o Chapare, mas também para o Departamento de La Paz - a região campeã em plantio. O presidente defende a produção para consumo tradicional, como mascar a folha de coca ou usar como chá.

"Nosso pessoal em campo está bastante convencido de que haverá um aumento real nos cultivos este ano. E isso provavelmente em parte causado pelas políticas do governo", disse por telefone uma autoridade da Embaixada dos EUA em La Paz, também sob a condição de se manter sob anonimato.

"Certamente, nós gostaríamos de ver mais envolvimento por parte de Brasília nesse esforço, especialmente porque é um problema que afeta o Brasil mais diretamente do que a nós", acrescentou o funcionário americano.

Mas o Brasil não dá sinais de que vá pressionar o governo boliviano na questão da coca. Questionado sobre a posição oficial do governo brasileiro, o Itamaraty disse apenas, por meio de sua assessoria de imprensa, que acompanha o tema da coca na Bolívia, mas que por enquanto considera que o assunto mais policial do que diplomático.

"Estamos buscando cooperação com os bolivianos", disse Soares, da PF. "Uma coisa são as decisões políticas, outra são as ações no campo técnico e operacional. Estamos visando fortalecer os cuidados na fronteira, mas principalmente para aumentar o trabalho da inteligência."

Segundo o Levantamento sobre Coca na Bolívia, feito pelo Escritório da ONU para Drogas e Crimes, divulgado em junho, o país cultivou 25,4 mil hectares de coca em 2005. Menos do que os 27,7 mil de 2004, mas ainda a segunda maior área plantada desde 1999. O Vice-Ministério da Coca e Desenvolvimento Integral estima que neste ano a área ficará em torno de 24 mil hectares. Mas os EUA falam em 26 mil, e o Brasil, em até 30 mil. "Estimamos que somente algo em torno de 7 mil hectares vão na verdade para o mercado legal. O resto abastece o narcotráfico", diz a autoridade da Embaixada dos EUA.

Pela legislação em vigor, só 12 mil hectares de áreas delimitadas poderiam ser cultivados para o consumo tradicional. Desde fevereiro, Morales tem implementado a política de erradicação voluntária, estimulando os próprios camponeses a manter os plantios dentro de limites legais. A meta é que 5 mil hectares sejam destruídos em 2006. Até agora, foram 3,7 mil. O ritmo da erradicação já vinha caindo nos últimos anos. E, para os EUA, o governo não conseguirá nem atingir o que foi registrado no ano passado, 6 mil hectares.