Título: Que medida de inflação deve ser perseguida como meta?
Autor: Srour, Solange
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2006, Opinião, p. A12

Desde o início da década de 90, o sistema de inflation targeting tornou-se bastante popular em um número crescente de países, tanto desenvolvidos - como Inglaterra, Canadá, Austrália, Nova Zelândia - quanto emergentes, como Brasil, África do Sul, Hungria, Polônia, entre outros. Apesar da ampla evidência de que o sistema foi fundamental para que várias economias alcançassem uma taxa de inflação baixa e estável com menor volatilidade na atividade econômica, a adoção das metas de inflação não foi uniforme entre os diversos países. Existem várias diferenças operacionais entre os regimes adotados, principalmente no que diz respeito à definição do índice que serve como meta, ao período de convergência, à periodicidade das reuniões das autoridades monetárias e a sua forma de comunicação.

A mais recente discussão sobre o regime de inflation targeting diz respeito justamente à definição da medida a ser adotada como meta. Os Bancos Centrais deveriam ter como meta a inflação cheia ou alguma medida de núcleo alternativa? Quais são as vantagens e desvantagens dessas duas opções? Há diferenças práticas em termos das respostas da política monetária aos desvios da inflação? O debate sobre tais questões ganhou impulso no último simpósio anual do Fed, em Jackson Hole, onde Charles Bean, economista-chefe do Banco Central da Inglaterra, foi bastante crítico da ênfase dada pelo Fed ao núcleo que exclui alimentos e preços de energia da inflação, em detrimento à inflação cheia. Bean foi respaldado por Trichet, presidente do Banco Central Europeu, e por outros Bancos Centrais da região. Além do embate entre as autoridades monetárias, um movimento bastante interessante começou a ocorrer nos últimos meses: alguns países que já adotam o inflation targeting tendo como meta o núcleo de inflação, como por exemplo Coréia do Sul, anunciaram que passariam a mirar a inflação cheia. O Banco Central da Tailândia já sinalizou que poderá fazer o mesmo, assim como a Índia, que, apesar de ainda não adotar formalmente o inflation targeting, tem ressaltado que as medidas de núcleo não são relevantes para o país, onde grande parte da cesta consumida é formada por alimentação e combustíveis, elementos freqüentemente excluídos ou suavizados nas medidas de núcleo.

Estes movimentos a favor do uso do índice cheio como meta é de extrema relevância no momento atual, em que a grande preocupação de quem acompanha a economia mundial é o recrudescimento da inflação global, depois de um longo período de baixíssimo risco inflacionário. Sem dúvidas, tal preocupação é mais intensa nos EUA, onde a inflação, medida pelo índice geral, tem ficado consistentemente acima da medida pelos núcleos, que por sua vez também está acima do nível que as autoridades monetárias definem como confortável. Se de fato a adoção da inflação cheia como meta se tornar o novo paradigma, estará em oposição ao que os críticos do inflation targeting no Brasil advogam, que é justamente a substituição da meta do IPCA por alguma medida de núcleo alternativa, que retiraria os preços administrados ou os preços que variaram de forma mais intensa, como o núcleo por médias aparadas.

O principal argumento a favor do uso da inflação cheia como meta baseia-se no conceito de bem-estar social: como a responsabilidade das autoridades monetárias é preservar a estabilidade do poder de compra da sociedade, não seria correto expurgar itens relevantes da cesta de consumo dos indivíduos. A inflação cheia também é mais bem compreendida pela sociedade, facilitando a comunicação por parte das autoridades monetárias. Os defensores do uso do núcleo apontam a perda de flexibilidade dos Bancos Centrais que perseguem a inflação cheia, uma vez que para alcançar suas metas têm que combater os choques de oferta, que poderiam ser filtrados pelos núcleos. A perda de flexibilidade pode ser, em parte, amenizada com o uso de bandas, e, mesmo quando estas não são suficientes, pode-se recorrer ao uso de "metas ajustadas", como fez o Brasil, ou ao alongamento do prazo de convergência, como ocorre na Inglaterra. Entretanto, tais estratégias sempre envolvem custos. A acomodação ou dissipação mais lenta dos choques pode colocar temporariamente a inflação mais perto do limite superior da meta, mas não pode justificar desvios sistemáticos, devido à perda de credibilidade que isto ensejaria.

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A grande motivação atual para a maior disposição em relação à adoção da inflação cheia como meta, ou mesmo a uma menor ênfase nas medidas de núcleo, como subsídio à condução da política monetária, é o questionamento sobre a natureza dos choques, que tem tornado a inflação medida pelos núcleos tão divergente da inflação medida pelos índices por um período mais prolongado do que o usual. A pergunta que se coloca é se estes choques, causados basicamente pela elevação dos preços das commodities relacionadas a energia, são somente choques de oferta ou são em parte reflexo de uma demanda global elevada. Se este for o caso, a exclusão do preço do petróleo dos índices de inflação tende a subestimar o excesso de demanda que os Bancos Centrais deveriam combater. A dúvida fica evidente quando o segundo maior consumidor de petróleo no mundo, a China, é também o país que mais tem crescido. A exclusão dos impactos dos elevados preços das commodities nos núcleos é mais controversa ainda quando constatamos que estes não excluem os choques positivos que a própria China e os demais países emergentes têm causado, que é a maior oferta de produtos industrializados com baixos preços, beneficiando bastante a inflação dos comercializáveis globalmente. Quando se adota um núcleo que exclui os elevados preços de energia e inclui os baixos preços dos bens industrializados, ambos fenômenos da maior globalização, passa-se a questionar o uso de dois pesos e duas medidas.

Em um mundo cada vez mais globalizado, cujo crescimento tem superado as expectativas sistematicamente, a discussão sobre qual a medida mais apropriada para ser estabelecida como meta de inflação é bastante relevante. A permanência por um período tão prolongado de uma inflação cheia bem acima das medidas de núcleo nos mais diversos países suscita a dúvida se os Bancos Centrais estariam sendo mais acomodatícios do que deveriam. No Brasil, o uso da inflação cheia como meta tem obtido um razoável sucesso em termos de minimizar a perda de produto pois, nos momentos críticos, as autoridades monetárias tiveram flexibilidade para usar as bandas ou ajustar as metas, conseguindo coordenar as expectativas. Assim como nos demais países, o acompanhamento dos núcleos foi e continuará sendo um instrumento importante para a identificação da tendência da inflação, minimizando os ruídos inerentes ao índice cheio. Não parece razoável que o Brasil mude nos próximos anos o sistema da inflation targeting, em direção contrária ao resto do mundo, tendo em vista nossa cada vez maior inserção na economia mundial.

Solange Srour é economista-chefe da Mellon Global Investments Brasil.