Título: Nobel para Yunus não derrota Adam Smith
Autor: Mukherjee, Andy
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2006, Opinião, p. A13

Muhammad Yunus, o primeiro empresário agraciado com o Prêmio Nobel da Paz, é um dos mais merecedores do louvor entre todos os outros premiados nos 105 anos de história do Nobel.

O empreendedor social de Bangladesh demonstrou que a mão invisível de Adam Smith funciona mesmo em lugares onde menos se poderia esperar, e que é possível emprestar aos pobres. Mas, para muitas pessoas, o elogio ao Banco Grameen criado por Yunus, uma instituição pioneira na concessão de microcrédito em todo o mundo, é um tapa na cara do capitalismo. Para elas, o Nobel é prova de que os sistemas bancários convencionais não têm utilidade para os pobres.

A Comissão do Nobel também parece apoiar essa visão pessimista. Seu comunicado à imprensa na semana passada anunciando a premiação conjunta de Yunus e do Grameen, diz que o microcrédito precisa desempenhar "um papel importante na eliminação da pobreza".

Sem dúvida, o crédito tem um grande papel a desempenhar. Mas precisa mesmo ser micro? Definições são importantes, aqui: segundo o modelo de Yunus, microcrédito significa emprestar para um grupo de pessoas impossibilitadas de oferecer garantias. Trata-se, atualmente, da forma mais comum de empréstimos aos pobres em muitas partes da Ásia, mas não estou seguro de que essa seja a melhor maneira.

O microcrédito é um sucedâneo. Trata-se de um recurso extremamente proveitoso em países onde contratos legais com tomadores individuais de empréstimos podem não valer o papel em que são redigidos, onde os sistemas judiciais são lentos e sobrecarregados, onde os pobres dispõem de poucas garantias legalmente aceitáveis para oferecer e onde um histórico de crédito é desprovido de valor porque ninguém o registra ou divulga.

Em tal situação, como demonstrou Yunus com tanto sucesso nas últimas três décadas, os direitos dos credores podem ser lucrativamente protegidos mediante a transferência do passivo de tomadores individuais para um grupo.

Se cada pessoa no grupo corre o risco de incorrer em algum prejuízo devido ao não pagamento de um empréstimo tomado por outro membro, a pressão de colegas tomadores suplantará a necessidade de garantias. Desde que o banco saiba que o grupo de tomadores honrará a dívida de cada indivíduo, a instituição estará disposta a conceder os empréstimos.

Responsabilidade grupal gera tensões: os maus clientes aproveitam-se dos bons, mas o banco, de todo modo, recebe o que lhe é devido. Uma experiência prática junto a uma clientela de microcrédito nas Filipinas - empreendida por Xavier Gine, pesquisador do Banco Mundial, e por Dean Karlan, economista da Universidade Yale -, concluiu que um sistema de crédito baseado na responsabilidade individual "é melhor para atrair novos clientes e conservar os existentes".

As pessoas pobres aceitam a responsabilidade grupal porque sabem ser a única maneira pela qual podem levantar empréstimos. Se tivessem opção, possivelmente desejariam assumir contratos individuais.

E se pudessem encontrar uma maneira de solucionar o problema da garantia, os bancos também prefeririam negociar individualmente, porque a formação e o treinamento de grupos implica um custo extra.

O modelo de pressão dos colegas é um entre muitos substitutos para a indisponibilidade das garantias. Em algumas nações asiáticas, os pobres têm condições de tomar pequenos empréstimos dando em garantia documentos pessoais - como certidões de nascimento - que não têm valor comercial para a instituição financeira, mas são importantes para o tomador.

-------------------------------------------------------------------------------- O prêmio Nobel concedido a Yunus deveria fazer com que as autoridades asiáticas revissem com atenção suas legislações sobre garantias de empréstimos --------------------------------------------------------------------------------

Esquemas alternativos não vão além disso. A verdadeira revolução financeira que ainda terá de acontecer na Ásia diz respeito aos direitos dos credores.

Na China, Índia, Camboja, Afeganistão, Laos, Tailândia, Mongólia, Vietnã, Coréia do Sul e Filipinas, a legislação não permite que contratos de empréstimos definam a garantia em termos genéricos: se um tomador compra uma vaca com dinheiro emprestado junto a um banco e a troca por um búfalo, cessa a garantia do empréstimo.

As leis e costumes em muitos países asiáticos impõem limites arbitrários ao que pode ser dado em garantia. Isso prejudica a atividade empresarial de todos, exceto dos ricos.

Por outro lado, existem diferenças entre países. O Paquistão não permite que credores e devedores firmem contratos especificando execuções extrajudiciais; Bangladesh e Índia permitem tal flexibilidade, mas não autorizam os credores a executar e vender as garantias à margem do processo legal.

A China não dispõe de um registro nacional de garantia sobre bens móveis, mas o Vietnã tem. Tal cadastro, um elemento existente na maioria dos sistemas creditícios em países desenvolvidos, permite que novos credores verifiquem se um ativo oferecido em garantia já não está comprometido em outra operação de crédito.

Grande parte do que pode ser oferecido em garantia nos EUA é, nas palavras de Hernando de Soto, respeitado economista peruano, "capital morto" no mundo em desenvolvimento.

Insuflar vida em capital morto - estoques, contas a receber e rebanhos - automaticamente faria com que o crédito fluísse para muito mais pessoas do que atualmente têm acesso a financiamentos nos países em desenvolvimento.

"Uma reforma do sistema de garantias pode produzir efeitos favoráveis no setor financeiro", assinala um estudo realizado em março por Mehnaz Safavian e outros pesquisadores do Banco Mundial. "Na Albânia, depois da aprovação de uma nova legislação regulamentando o uso de garantias e a criação de uma agência cadastral de financiamentos em 2001, o ágio de risco nos financiamentos caiu à metade, o spread dos juros (diferencial entre as taxas de captação e de concessão de empréstimos pelos bancos) diminuiu 43% e os juros caíram 5 pontos percentuais."

Três décadas atrás, quando Yunus fundou o Banco Grameen, em Bangladesh, o custo de chegar até os pobres nos vilarejos era proibitivamente alto para um banco convencional. As tecnologias de comunicações reduziram substancialmente os custos desse tipo de transações.

O Nobel concedido a Yunus deveria fazer com que as autoridades governamentais asiáticas revissem com mais atenção suas legislações sobre garantias de empréstimos.

Abrir espaço para a mão invisível de Adam Smith erradicará a pobreza mais rapidamente para um número maior de pessoas do que a criação de clones do Banco Grameen.