Título: Uma década depois, Justiça tem mais de 230 processos contra privatizações
Autor: Basile, Juliano
Fonte: Valor Econômico, 23/10/2006, Política, p. A6

Ações judiciais questionando a privatização de antigas estatais tramitam na 1ª instância da Justiça quase dez anos depois das respectivas vendas e representam um risco às companhias que foram vitoriosas nos leilões e ao governo. Ambos podem ser chamados a reparar eventuais danos através de indenizações.

Ao todo, mais de 230 processos pedem a revisão de critérios adotados pelo governo na venda de apenas três antigas estatais: a Companhia Vale do Rio Doce, a Telebrás e o Banespa. Essas foram as privatizações que acumularam o maior número de conflitos no Judiciário. Somente no caso da Telebrás, privatizada em julho de 1998, surgiram 89 ações na Justiça contra a alienação. A venda do Banespa, realizada em novembro de 2000, movimentou pelo menos 50 processos judiciais. A privatização da Vale, em maio de 1997, foi acompanhada de mais de cem ações no Judiciário.

Os pedidos contra as privatizações são os mais variados possíveis. Vão desde contestações à avaliação econômica das antigas estatais até a alegação de que houve falhas nas regras dos editais de venda dessas companhias. A alegação mais comum - e que perdura até hoje no Judiciário - é a de subavaliação das estatais.

No caso do Banespa, por exemplo, apesar do ágio de 281% (o banco tinha preço inicial de R$ 1,8 bilhão e foi vendido por R$ 7 bilhões), até hoje se questionam os cálculos utilizados por bancos, consultorias econômicas e pelo Tribunal de Contas da União (TCU) para avaliá-lo.

Procurado, o Santander Banespa preferiu não se manifestar. O banco não comenta ações em curso na Justiça.

Já no caso da Vale (vendida por R$ 3,3 bilhões) e das companhias telefônicas (vendidas por R$ 20 bilhões), os opositores das privatizações apontam os lucros atuais das empresas para sustentar a tese de subavaliação. Segundo analistas de mercado, o valor de da Vale, em maio deste ano, atingiu US$ 66,8 bilhões, 20 vezes maior do que o da venda (se considerada a paridade do real com o dólar na época da privatização).

Ao comentar a privatização, em entrevista concedida no dia 16, o presidente da Vale, Roger Agnelli, disse que a empresa aumentou o seu valor no mercado, pois multiplicou os investimentos, melhorou a eficiência e aumentou o número de empregos e fornecedores. "Estou muito tranqüilo de que a privatização da Vale foi boa para o país, para a companhia e para as regiões onde a empresa atua", disse Agnelli.

O advogado João Piza Fontes, que atuou na Justiça contra as três maiores privatizações do país, defende a tese de que há como ressarcir eventuais prejudicados. Ele ressaltou que o Tribunal Regional Federal (TRF) de Brasília decidiu que, no caso da Vale, há como reverter os efeitos da privatização. "Resolve-se por perdas e danos", disse Piza Fontes. Mas, quem pagará pelos supostos prejuízos das privatizações? "A União e os compradores é que teriam que ressarcir", respondeu o advogado. Quanto? "A diferença entre o valor real e o laudo subavaliado", enfatizou Piza Fontes, responsável por dezenas de liminares concedidas na Justiça barrando a venda da Vale, da Telebrás e do Banespa.

Pode parecer inédito rever a venda de estatais quase dez anos depois de sua concretização, mas o fato é que a Justiça tem meios para determinar o pagamento de indenizações de centenas de milhões de reais, caso conclua, após anos de análises, que houve prejuízo aos cofres públicos nos leilões de privatização.

Em julgamento realizado em outubro do ano passado, a 5ª Turma do TRF mandou a 1ª instância da Justiça do Pará fazer uma perícia técnica para reavaliar a venda da Vale. A relatora do processo, desembargadora Selene Maria de Almeida, justificou a decisão alegando que a Vale é uma das maiores produtoras e exportadoras de minérios do mundo. Por isso, a venda da companhia deve ser periciada "por equipe multidisciplinar, para que sejam esclarecidas as pretensas contradições e possíveis irregularidades que teriam ocorrido no decorrer do processo de desestatização".

A decisão do TRF foi tomada oito anos e meio depois da venda da estatal.

Para a vice-presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Andréa Pachá, as ações contra as privatizações revelam um descompasso entre a rapidez das questões econômicas e a demora das causas judiciais. "Há uma dificuldade em adequar o tempo da economia ao tempo judicial, e este é um paradoxo complicado para se administrar", comentou a desembargadora.

Pachá explicou que há vários pontos de vista a serem considerados nessas ações contra as privatizações. Do ponto de vista do governo, deve-se levar em consideração que "nem sempre se pode esperar uma decisão jurídica definitiva para se tomar uma decisão política de interesse econômico". Ou seja, o governo, ao privatizar, não pode esperar oito anos para a Justiça avaliar se a estatal deve mesmo ser vendida e por qual avaliação econômico-financeira. Por outro lado, há o ponto de vista dos juízes. E, se por acaso os juízes entenderem, ao final desses processos, que houve equívocos no processo de privatização, a tendência, confirmou a desembargadora, é que as ações sejam resolvidas com o pagamento de indenizações.

O economista Raul Velloso trouxe outro ponto de vista: o das empresas envolvidas. Velloso alerta que as antigas estatais fizeram várias fusões e aquisições após as privatizações. A Vale, por exemplo, foi adquirida por um consórcio liderado pela CSN e hoje as duas empresas são rivais. O governo fez o descruzamento acionário entre a mineradora (Vale) e a siderúrgica (CSN) no fim dos anos 90. Depois, ambas fizeram dezenas de aquisições para reforçar as suas respectivas posições no mercado e acabaram se tornando rivais. Grande parte dessas aquisições foi, inclusive, aprovada pelo governo, através do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) do Ministério da Justiça.

O setor de telefonia também convive, todos os anos, com dezenas de fusões e aquisições, desde julho de 1998, quando foi extinta a Telebrás. Muitas dessas operações também foram aprovadas pelo Cade. Logo, como rever este processo?

"A não ser que seja descoberta uma falha muito grande ou um escândalo, não vejo como essas ações contra as privatizações possam prosperar", afirmou Raul Velloso. Ele acredita que será difícil a Justiça rever os processos de privatização justamente pelo tempo que ela leva para decidir questões complexas como essa. "À medida que o tempo vai passando, o teste das privatizações vai sendo feito e elas vão se tornando um fato consumado", afirmou o economista. "Todo esse cenário vai colaborar para tornar essas ações sem efeito", completou.

No Supremo, que deve ser chamado para dar a posição final nesses processos, vários ministros já revelaram o desconforto em reverter questões econômicas consolidadas. Em julgamento realizado há dez dias sobre o modelo do setor elétrico, os ministros criticaram o fato de o governo ter imposto regras por medida provisória. Mas, por outro lado, submeteram-se ao fato consumado, levando em conta a confusão que seria rever hoje o modelo feito pelo governo, em dezembro de 2003, para um setor importante da economia. A presidente do STF, ministra Ellen Gracie, lembrou que o setor envolve elevados custos e planejamentos a longo prazo. "Se anularmos (o modelo), iremos instalar uma situação de insegurança e de dúvida", advertiu o ministro Eros Grau. "Me parece que temos que encerrar julgamentos como este antes do fato consumado, de situações consolidadas", apontou o ministro Gilmar Mendes.

Outro fato que pesa em um eventual julgamento do STF sobre as privatizações é que o tribunal recebeu vários pedidos de liminares para interromper os leilões e, na maioria das vezes, foi favorável aos procedimentos de vendas das estatais.

Somente o ministro Carlos Velloso, então presidente do STF durante a venda do Banespa, teve de analisar a privatização do banco por quatro vezes diferentes. O plenário do STF, composto por 11 ministros, deu o aval para a venda do Banespa, por oito votos a três. Quando exerceu a presidência do Supremo durante a venda da Vale, o ministro Celso de Mello também concedeu despachos a favor da privatização, antes de a empresa ser vendida.

Ao analisar o caso da Vale, o ministro Sidney Sanches, hoje aposentado, resumiu bem a questão: "Os juízes precisam ouvir informações antes de julgar - informações que não configuram lobby, que não configuram pressão, configuram informação científica. E disso é que careceu, parece, o processo de privatização, imaginamos nós, juízes".