Título: Gabeira aponta nova revolução industrial
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 12/02/2007, Brasil, p. A7

O deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ) acredita que o impacto do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) divulgado no início de fevereiro, em Paris, é o início de uma nova revolução industrial, baseada em novas matrizes pós-petróleo e com muitas possibilidades. "O aquecimento global não é apenas um espaço onde vão se distribuir sacrifícios. É um espaço também de enormes oportunidades", diz ele, que evita o tom apocalíptico, porque é paralisante. "Podemos retardar este processo e trabalhar com toda a capacidade tecnológica para tentar evitar que ele seja fatal."

O deputado mais votado no Rio de Janeiro, agora volta à plataforma ambiental sem abandonar a agenda pela ética no Congresso. Já programa quatro audiências sobre o aquecimento global e as políticas de saúde, energia, defesa civil e trânsito. Reapresenta projetos para reduzir o consumo de energia de eletrodomésticos em posição de espera e a emissão de carros. O tema já aqueceu o Congresso: a frente ecológica parlamentar que se forma a cada legislatura já atingiu a marca histórica de 227 assinaturas nesta edição. Câmara e Senado criam subcomissões, uma delas presidida pelo senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL).

"Trabalharei com ele como fizemos durante a Eco-92. Ele não é insensível a este tema. Pelo contrário, se mostrou muito interessado à época", afirma Gabeira, que prefere que o Congresso crie uma comissão mista, para não haver multiplicidade de iniciativas. Para as audiências, quer convocar especialistas que falem aos parlamentares. "Não há mais condições de ficar falando genericamente sobre aquecimento. É preciso passar direto para a ação." A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Quinze anos depois da Eco-92, o que agora chama a atenção é que o cidadão está despertando para o problema.

Fernando Gabeira: Vejo dois movimentos. Um é o despertar das pessoas. O outro é que houve uma inflexão dentro do próprio IPCC, que resolveu adotar um tom mais de alarme. Na minha opinião, isso despertou uma série de potencialidades que ainda não estavam no ar. E também acirrou o debate. Costumo dizer que se o mundo vai acabar, que acabe em democracia.

Valor: Quais as correntes principais deste debate?

Gabeira: Uma contesta a gravidade do aquecimento global e questiona o peso que o IPCC atribui ao tema. Defende que é mais importante gastar, no momento, contra a fome e contra a Aids. Esta formulação foi contestada pelo relatório Stern, apresentado ao premiê Tony Blair, que diz que gastando agora, se gastará menos no futuro. E existe outra linha crítica, antiga, de que esta posição pode refletir mais a adesão dos países desenvolvidos e que pode inibir o desenvolvimento dos que ainda não chegaram lá. Acho uma visão limitada.

Valor: A corrente que coloca o problema no contexto da contradição Norte-Sul?

Gabeira: Isso. Mas o aquecimento global não é apenas um espaço onde se vão distribuir sacrifícios. É um espaço também de enormes oportunidades.

Valor: Como por exemplo?

Gabeira: Dá para a China atrair capitais maciços e modernizar sua produção. Ou para o Brasil determinar a área já destruída da Amazônia e fazer um projeto internacional de reflorestamento.

Valor: Internacional?

Gabeira: Dinheiro internacional e gestão brasileira. Porque o Brasil já está abrindo a floresta para derrubarem árvores, ainda que de uma forma manejável. Porque não abrir também para plantarem?

Valor: Mas isso não daria uma gritaria danada?

Gabeira: O projeto que foi aprovado na Congresso é o da exploração sustentável da floresta. Se não houve uma grita na exploração sustentável da floresta por grupos estrangeiros, porque haveria com um projeto nacionalmente dirigido, para reflorestamento? Quanto à sustentabilidade você tem sempre dúvidas, quanto ao reflorestamento, não. É um ato inequívoco.

Valor: É um dos lados positivos do quadro sombrio?

Gabeira: Tanto o lado positivo quanto o negativo têm que ser considerados. É assim que a humanidade caminha, enfrentando os desafios e tentando contorná-los. Acho que o momento aponta para o que pode ser uma nova revolução industrial, baseada numa nova matriz energética, pós-petróleo. Da energia solar, dos ventos, dos biocombustíveis.

Valor: A sociedade se reinventa?

Gabeira: Lógico. Ela se reinventa a partir de uma revolução industrial, como foi a do motor a vapor ou da informática. A mudança de hábitos da sociedade vai surgindo à medida em que se oferecem alternativas. Eu não acredito na possibilidade da mudança só com o discurso apocalíptico. Acredito na mudança à medida em que vai se construindo uma base material e tecnológica. Tem gente que pensa que mesmo que se trabalhe muito, a vida no planeta vai desaparecer de qualquer forma. Temos que ver o seguinte: existe o problema, podemos retardar o processo e trabalhar com toda a capacidade tecnológica para evitar que ele seja fatal. Temos um caminho para trabalhar. Tenho medo de que o alarme seja contraproducente. Pode trazer resignação.

Valor: O senhor sente nos governos um desejo efetivo de mudar?

Gabeira: Não sei se os governos vão atuar com a rapidez que é preciso, apesar de achar que na Europa existe maior sensibilidade. Mas não devemos ficar muito fixados neles. Nos Estados Unidos, o governo central tem uma posição, mas os locais tem outra.

Valor: O senhor observou novas iniciativas deste caminho?

Gabeira: Há intenso fluxo de capitais americanos para a Europa buscando investimentos na energia alternativa, os EUA atrás da produção de etanol através do milho. É tão grande este movimento de busca de fontes alternativas que o nosso problema hoje não é estimulá-lo, mas tentar fazer com que respeite algumas prioridades. Por exemplo, o crescimento do biocombustível nos EUA teve uma repercussão dramática no México com o aumento do preço da tortilha, feita de milho. O cerne da questão pode ser tentar orientar o caminho destes capitais respeitando o meio ambiente na sua produção.

Valor: E no Brasil?

Gabeira: Vi uma experiência em Sertãozinho, no interior de São Paulo, que poderia ser desenvolvida, de plantações de cana de açúcar da família Zanini combinadas ao plantio de alimentos. Esta fórmula, tanto no Brasil como fora, deveria ser explorada. Não resolve um problema ampliando outro, que é o da alimentação mundial. E aqui vamos ter que trabalhar algumas dificuldades que os ecologistas têm em aceitar a transgenia, e que têm que ser superadas.

Valor: O senhor é favorável aos transgênicos?

Gabeira: Acho inevitável, inescapável o trabalho da biotecnologia para tornar plantas mais resistentes ao calor, coisa que a Embrapa já vem fazendo. Não sou contra a idéia de transgênicos e sobretudo neste caso. O Brasil tem espaço para o transgênico, para o convencional e para o orgânico. Claro, desde que se utilize o princípio da precaução, que seja plantado de acordo com as condições exigidas, com a segregação adequada. Como o Canadá faz, por exemplo.

Valor: A China quer investir em usinas nucleares para limpar sua matriz energética. O Brasil voltou a falar de nuclear. Qual sua posição?

Gabeira: Acho que o processo nuclear no Brasil ainda está em desvantagem. Temos hidrelétricas, biocombustíveis, uma série de possibilidades diferentes das dos países muito dependentes de petróleo. Países que já tem alguma sustentabilidade ambiental e energética não precisam, necessariamente, entrar nesta trilha e acho que o Brasil deveria ver as outras opções antes desta. Mas em função das novas circunstâncias estou aberto à discussão, não pretendo ser o dono da verdade.

Valor: Os chilenos resolveram abolir a gravata nos escritórios para reduzir o uso do ar-condicionado. A sociedade brasileira consegue tomar atitudes coletivas?

Gabeira: Tivemos uma experiência importante com o apagão, percebemos que é possível economizar energia no consumo cotidiano. Avançamos muito com a crise, mas aos poucos os velhos hábitos vão retornando. Acho que deveria soar de novo o alarme para a economia energética. E levar em conta que quanto menos tensão tivermos sobre os rios e sobre todas as fontes que produzem energia, melhor.

Valor: Como o senhor vê o projeto das usinas do rio Madeira?

Gabeira: Temos que resolver todas as questões pendentes, mas estas usinas podem ser uma forma de evitarmos trazer o nuclear para o Brasil mais intensamente. Resolvidos os problemas, as usinas são muito melhores do que o nuclear.

Valor: E o da transposição do rio São Francisco?

Gabeira: Sem recuperar o rio seria o mesmo de propor como doador de sangue alguém que está enfermo. Propusemos a sua revitalização com projetos na nascente, de saneamento básico, de replantio das matas ciliares. Podemos renegociar a transposição depois da revitalização.

Valor: Em que está trabalhando?

Gabeira: Em três campos: o aquecimento global e as oportunidades e problemas que oferece; a redução das emissões e o terceiro, que me parece bem urgente, é a preparação do país para os efeitos reais. Programei quatro audiências públicas, ainda sem data. A primeira vai tratar do aquecimento e a política sanitária no Brasil, até que ponto o fenômeno pode aumentar doenças como malária, dengue, como já ocorre na África. A outra é o aquecimento e a defesa civil. Considerando que muitas cidades brasileiras estão sendo castigadas e devem ser mais, é preciso repensar o processo para estar à altura do que virá; o terceiro é o trânsito, os engarrafamentos, as emissões. Tenho um projeto sobre isso e outro sobre consumo energético.

Valor: Como é este projeto?

Gabeira: Surgiu em um grupo do qual participo, de parlamentares preocupados com este tema no mundo. Resolvemos apresentar um projeto em vários lugares, meio simultaneamente, e que exige que eletrodomésticos em posição de stand by consumam apenas 1 watt. Já foi aprovado na Finlândia e Noruega, está nos EUA e eu o trouxe para o Brasil. Já passou por algumas comissões, devo reapresentá-lo agora para que vá a plenário. O outro projeto, copiado da Califórnia, é o da redução das emissões dos carros.

Valor: A agenda ambiental voltou a ser sua prioridade?

Gabeira: Claro. Vou tentar combinar a reforma política e o aquecimento global. Tive que fazer uma curva para lutar na questão ética da Câmara, que estava se decompondo em termos morais.

Valor: Como o senhor vê o impacto da mudança climática no Brasil?

Gabeira: Parte da floresta amazônica pode virar uma savana, vamos ter que refletir também sobre o impacto na nossa agricultura. Mas acho que temos grandes chances. De atrair projetos de seqüestro de carbono, por exemplo, uma idéia protagonizada pelo Brasil. Temos condições de atrair muitos capitais para o nosso desenvolvimento sustentável e que signifiquem, também, redução de emissões para os países que investirem.

Valor: O PAC contempla o aquecimento global?

Gabeira: Não, o PAC é pré-aquecimento global. Mas contempla a ampliação da energia hidrelétrica, de desenvolver energias alternativas, de avançar no biocombustível, de ser autosuficiente em gás natural. Tudo isso caminha no bom sentido, embora o governo não tenha mencionado o aquecimento.

Valor: E a contradição que o Brasil tem, que ficou clara em 2006, entre ambiente e crescimento?

Gabeira: Nos termos em que estamos falando, de uma revolução industrial, de um envolvimento planetário de segurar o aquecimento, o Brasil pode se desenvolver. O Brasil é uma potência natural. Com a biodiversidade que ainda se mantém aqui, o volume de água que temos, todas estas coisas articuladas podem vir a ser uma vantagem. Não tem sentido o Brasil pensar em crescer, neste momento, da mesma forma como os outros cresceram. Primeiro, porque não há possibilidade de crescer daquele mesmo jeito; segundo, porque existe outra forma. Não se pode abrir mão dela nem subestimá-la, o potencial é grande.

Valor: Mas a posição do governo tem sido de falar aos países desenvolvidos "olha, vocês já emitiram, não venham nos cobrar". Esta retórica, a este ponto, é construtiva? Faz sentido Brasil, China e Índia continuarem no mesmo bloco, no Protocolo de Kyoto, de Burundi e Haiti?

Gabeira: A situação ambiental da China é diferente da do Brasil. Desde a Revolução Comunista eles decidiram crescer independentemente do meio ambiente, hoje têm um passivo ambiental muito grande e precisam, rapidamente, de uma modernização. Mas a discussão Norte-Sul tem uma base de realidade e temos que respeitá-la. Todos os países estão no mesmo barco planetário, mas alguns contribuíram mais para o processo. É, sim, necessária uma avaliação da situação de cada um. Mas não podemos entender a luta contra o aquecimento apenas como a distribuição de sacrifícios. Ela tem que ser pensada como uma distribuição de oportunidades. O capitalismo está se aprofundando em uma nova etapa. O que estamos vivendo é uma fase onde produtos voltados para a qualidade de vida e proteção ambiental passam a ter papel fundamental. Agora, como em todo avanço do capitalismo global, se discute o papel de cada um e a relação entre os grupos. Mas acho que, neste momento da História, este debate é muito mais produtivo e pode ensejar saídas muito mais criativas do que aquela velha discussão de "o imperialismo está querendo nos explorar."

Valor: Então você acredita em um capitalismo "limpo"?

Gabeira: Acredito que possa ser o mais próximo disso e que possa retardar o processo do aquecimento. Mas há dificuldades no meu pensamento. Por exemplo, temos a tendência de deixar a África entregue ao seu destino. Do ponto de vista de uma luta planetária ela não vai poder ficar assim, vai precisar de muita solidariedade e trabalho. A desertificação na África vai implicar em conseqüências a todos. Já não há mais esta fronteira.

Valor: Estão surgindo novas lideranças com agenda planetária?

Gabeira: Elas aparecem em ONGs, em partidos. O que acontece é que são poucos os países que conseguem produzir algo prático depois das reuniões internacionais. Só o bloco europeu tem conseguido ter um projeto de adaptação da economia, da sociedade, aos novos tempos. O Brasil ainda não.

Valor: Os europeus querem brecar o aquecimento reduzindo o consumo. Um país exportador como o Brasil não fica em situação difícil?

Gabeira: Em tese, sim. Mas existem aspectos que têm que ser considerados. O primeiro é que o consumo de produtos agrícolas cada vez mais passa por um crivo de sutentabilidade junto aos consumidores. Outro dia, por exemplo, executivos do McDonald´s estiveram com o Greenpeace sobrevoando a Amazônia para ver como é produzida a soja. A pressão dos consumidores sobre a sustentabilidade dos produtos faz com que o Brasil possa entrar no mercado sem grandes problemas. Se a carne brasileira tiver características de sustentabilidade, ela terá um plus no mercado internacional. A sustentabilidade será uma maneira de competir neste universo.

Valor: Isso vai significar mais exigência nos critérios...

Gabeira: Sem dúvida. Temos que ter um controle maior. O nosso investimento em biossegurança é pequeno. Temos que intensificar o investimento neste processo porque é ele que vai nos dar retorno.

Valor: Como o senhor analisa a gestão da ministra Marina Silva?

Gabeira: Acho que vai avançar, até vai ser forçada a isso. Ela vai ter que dar uma resposta sustentável ao impulso do crescimento interno, e também pelo próprio potencial que o Brasil tem neste momento. Podemos ter avanços grandes porque, de um modo geral, o projeto de desenvolvimento do Brasil sempre foi discutido um pouco à parte da questão ambiental.

Valor: Em 2006, a oposição se pautou pela crise na ética. O debate, agora, será do aquecimento e do crescimento? Será mais temático?

Gabeira: Desde que se faça a reforma política. O debate temático seria um grande avanço, mas se não atingirmos as causas da degradação do sistema político brasileiro, novos escândalos vão surgir e nos atropelar.

Valor: O senhor está com o bloco de esquerda que se descola do PT?

Gabeira: Eu componho em função de temas. Cada vez que há um tema, eu me associo a um grupo. Quando termina, passo para outro onde as afinidades apareçam de novo. Agora, junto ao deputado Sarney Filho, estamos montando a frente ecológica parlamentar que já tem uma adesão muito boa. Vamos trazer deputados de vários horizontes, que se interessam também pelo meio ambiente.

Valor: Continua indo ao Congresso de bicicleta?

Gabeira: Agora não. Estou morando muito longe do gabinete.