Título: Governo põe em pauta novas usinas nucleares
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Fonte: Valor Econômico, 23/10/2006, Especial, p. A16

Se há um ministro forte no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva é Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil, responsável pela coordenação de todos os demais ministros e por tirar obras e projetos do papel. E é ela que adianta um assunto potencialmente polêmico que vai entrar na pauta do governo: o plano de ampliação da oferta de energia nuclear no país. "A partir de agora entra na pauta do Ministério de Minas e Energia uma discussão clara a respeito não só de Angra 3, mas de um plano de usinas nucleares", informa a ministra. Angra 3, argumenta, "não faz verão sozinha". Dilma não entrou em detalhes, mas o plano elaborado pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) prevê mais seis usinas nucleares, além de An- gra 3.

Num eventual segundo mandato de Lula, o poder de Dilma tende a se multiplicar, conforme adiantam interlocutores muito próximos ao presidente. Ela não fala sobre si mesma e, perguntada sobre seu papel no governo a partir de 2007, desconversa. Mas não mede palavras quando o assunto é a prioridade do provável segundo mandato: "Será a obsessão pelo crescimento", assinalou em entrevista ao Valor. E o que deve crescer é o mercado interno e os setores de bens não-comercializáveis.

Para crescer a taxas mais elevadas, a oferta de energia não será um gargalo. "Não vai faltar energia 'nem que a vaca tussa' ", assegura. A construção das usinas do rio Madeira e de Belo Monte, sustenta a ministra, não será uma questão do Ministério das Minas e Energia, mas questão "de Estado".

Sobre o ajuste fiscal e a necessidade de reduzir os gastos correntes para abrir espaços para investimentos em infra-estrutura, ela não tem tanta segurança e recomenda: nada de choques. "Esses processos precisam de um certo gradualismo". Também não acredita na eficácia de se reduzir o número de ministérios ou cortar despesas com diárias de viagens. "Isso dá o quê? Uns 0,02% do PIB?".

No ano passado Dilma abortou a discussão de um programa fiscal de longo prazo que pretendia zerar o déficit nominal das contas públicas até 2010, considerando "rudimentar" a proposta na época patrocinada pelo ministro do Planejamento, Paulo Bernardo. Hoje esse debate está mais adiantado, mas a ministra continua sem muita convicção sobre ele. "Se eu tenho algumas metas, tenho que ter metas para crescer também." A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Se Lula for reeleito, o que fará o governo já em 2007 para superar o processo de idas e vindas da economia e imprimir trajetória de crescimento mais permanente?

Dilma Rousseff: Essa é uma proposta que tem por base um conceito não macroeconômico, que é a obsessão pelo crescimento. Assim como no período anterior houve uma obsessão pela inflação - e as vantagens que tiramos disso foram muito grandes porque virou um valor para gregos e troianos no Brasil. Acho que temos que ter essa discussão em torno do crescimento. Nos últimos tempos, o Brasil construiu as condições mínimas que possibilitam que essa obsessão pelo crescimento deslanche. Tivemos um grande problema no passado, talvez o grande responsável pela profundidade da queda [do PIB], que foi a fragilidade externa. Isso circunscrevia a margem de manobra dos governos diante de crises externas. Para atrair divisas, por exemplo. O que aconteceu no Brasil diante de crises internacionais foi brincar na beira do abismo e cair de vez em quando. Isso foi superado de forma sustentável. Hoje a economia gerou outro problema, que é o câmbio.

Valor: Como lidar com esse problema?

Dilma: A quantidade de dólar que hoje entra no país é bastante elevada e inevitavelmente valoriza a nossa moeda. Falando de forma superficial, entram US$ 60 bilhões, US$ 40 bi de exportações e US$ 15 bilhões de investimentos estrangeiros. Cada vez que nos aproximamos mais do "investment grade", essa capacidade de atração de capitais ao país aumentará, com a queda dos juros. A grande possibilidade de ter uma situação diferenciada é o mercado interno.

Valor: Crescer pelo mercado interno?

Dilma: O grande desafio é o crescimento acelerado da economia. Continua sendo fundamental aumentar as exportações, mas me refiro ao crescimento dos bens não-comercializáveis, nosso grande desafio. Nessa equação, há pré-requisitos fundamentais. Um deles é a queda da taxa de juros de forma responsável. Ninguém pode defender detonar a taxa de juros para baixo. Aventura é algo para o qual todos estamos vacinados, aquelas em que nos metemos não nos levaram a nada. Mas a trajetória dos juros é sustentável por causa da inflação abaixo da meta, em 2006. E a inflação futura, para 2007, também está abaixo da meta.

Valor: Esse é um cenário que parece ótimo. A sra. diria, porém, que o Banco Central errou na mão?

Dilma: Todos gostaríamos de ter bola de cristal. A política macroeconômica não é uma ciência, está sujeita a adaptações. Receita de bolo não é a melhor forma de tratar a política econômica. O BC - aliás, não diria o BC, mas o Ministério da Fazenda - teve um mérito: tirar o país de uma trajetória explosiva em termos de índices de inflação, risco cambial e taxas de juros. Isso nós fomos ajustando. Esses quatro anos passaram. Agora, o que eu espero, é outra política. Uma política que tenha um olho muito forte no crescimento, senão os dois olhos, preservando as conquistas realizadas. Concordo que vamos ter que avançar em algumas reformas. Já fizemos várias, mas vamos ter que equacionar outras.

Valor: Quais?

Dilma: Racionalizar gasto público, por exemplo. Mas o que é racionalizar o gasto público? Tem hora que a discussão fica simplista, como se a solução estivesse no corte. Muitas vezes a solução está na forma do gasto. Conversando recentemente com produtores rurais concluímos que muito da política agrícola é substituição da falta de infra-estrutura. Por exemplo, se tivermos a BR-163 e a BR-158, que escoa a produção do Centro-Oeste, o custo de frete seria bem menor. Com isso, não precisaríamos dar os cerca de R$ 2 bilhões anuais de subsídios que damos à comercialização da safra. Outras questões relativas à capacidade de depurar o gasto: tratar a questão dos portos. O investimento que se faz no custeio, para viabilizar o funcionamento dos portos, e a eficiência quando olha o aspecto do investimento. O mais difícil a fazer, daqui para frente, é detectar os processos que levam à redução de custeio e ao aumento da eficácia dos investimentos. Tudo isso significará produtividade econômica.

Valor: A sra. falou em obsessão pelo crescimento...

Dilma: Por crescimento e pela questão da desigualdade social.

Valor: A sra. acha possível perseguir essa obsessão e manter a carga tributária em 40% do PIB?

Dilma: O governo vai ter que tratar de duas questões: impostos e câmbio. O câmbio precisa de crescimento econômico e mercado interno para importarmos mais.

Valor: Como acelerar o crescimento do mercado interno?

Dilma: Com redistribuição de renda e redução da taxa de juros. Todo o ambiente criado nos últimos quatro anos permite isso.

Valor: Na reforma tributária, o que pode ser feito em um momento em que se fala também de corte de gastos do governo?

Dilma: Não se pode fazer isso com choques, não há solução fácil. Esses processos precisam de certo gradualismo. Não é possível cortar os R$ 60 bilhões propostos por um economista até respeitável, como o Nakano, sem fechar alguns ministérios ou parte deles. Não se faz milagres, pegar uma máquina desse porte, paralisa-la e isso dar certo. É fantasia.

Valor: No segundo mandato, Lula poderia fazer reforma administrativa, fechar ministérios?

Dilma: Até pode, mas não acho que isso resolva o problema. Isso dá o quê, 0,02% do PIB? Ninguém acha que isso é o gasto, nem acha que o pesado é o gasto com o avião do presidente.

Valor: O grande nó, então, é a Previdência?

Dilma: Há vários grandes nós e precisamos discuti-los. Na Previdência, precisamos tomar medidas efetivas de combate à fraude. Isso faz diferença. Há um conjunto de medidas na Previdência que fazem diferença. Juntar ministério A com B para dar mais eficiência à ação do governo faz sentido, mas, se for só na ótica de poupar, o efeito não é muito grande.

Valor: A sra. é contra aumentar a idade mínima de aposentadoria?

Dilma: Acho que é preciso estudar isso com cuidado, senão se faz o ajuste só para os que estão embaixo. É preciso discutir o Estado brasileiro com cautela, evitando o uso eleitoral de certas fórmulas mágicas, como reduzir o gasto em R$ 60 bilhões.

Valor: No ano passado, a sra. chamou de rudimentar a proposta de ajuste fiscal de longo prazo. Hoje ela já está mais madura?

Dilma: Naquele momento, a discussão estava em seu início, e foi naquele sentido que disse estar rudimentar. O primeiro modelo previa uma taxa de crescimento inicial de 4,5% do PIB e no final ia caindo para 4%. Ou seja, era uma contradição e tinha inconsistências. O intuito do ministro Paulo Bernardo (do Planejamento) era virtuoso. Ele está preocupado com as finanças públicas. É por isso que as coisas, quando vazam antes da hora, levam a distorções. Não é viável entrar no gabinete, sentar na cadeira e aplicar um modelo sem saber o que se está cortando. Se não, tem hora que corta recurso para prevenção da gripe aviária, amamentação de criança, verbas para educação e Bolsa Família. Por isso, é preciso discutir os gastos de forma cuidadosa e o processo deve buscar o equacionamento em um tempo determinado. A proposta do Paulo Bernardo tinha o mérito de colocar esse debate.

Valor: Então, o assunto ainda não está maduro?

Dilma: O assunto hoje assumiu outra perspectiva: a de um balanço do que aprendemos com quatro anos de governo. Depende da taxa de crescimento do PIB. Ou seja, o que depende do quê? Se eu tenho algumas metas, então tenho que ter metas para crescer também. Qualquer discussão sobre o modelo é bem-vinda, mas ela deve ser antes de mais nada sobre onde queremos chegar. E queremos chegar a um crescimento robusto, sem "stop-and-go". Três ou quatro anos seguidos de crescimento permanente criam um ciclo virtuoso. O próprio crescimento gera expectativas virtuosas do mercado.

Valor: Não necessariamente com reforma do gasto público?

Dilma: A reforma do gasto público é aquela permanente, feita sistematicamente contra a despesa excessiva e mal realizada, e não por meio de choques. O grande desafio de gerir a máquina do Estado é a gestão de processos, que mostra as ineficiências. O que dá retorno e o que não dá. Posso reduzir o custeio, por exemplo o gasto com diárias, sem matar de fome os funcionários públicos, preservando o direito de tomar café-da-manhã, almoço e jantar? Quando se fala em obsessão pelo crescimento, cria-se também uma proposta de ampliação da arrecadação tributária. Uma coisa é fazer ajuste com crescimento zero, outra com crescimento de 5% do PIB. Vamos ter que tornar cada vez mais eficaz o gasto governamental, diminuindo as disfuncionalidades que ele produz no investimento privado. Mas não vivemos naquele momento em que o país não tinha um tostão.

Valor: Infra-estrutura é ou não um gargalo para esse crescimento robusto, sem "stop and go"?

Dilma: Veja a questão energética. Precisamos de energia hídrica, e não temos porque não temos usinas hidrelétricas. Acabar com o planejamento é uma coisa terrível. No nosso caso, interrompemos em 1997 o papel de planejamento que a Eletrobrás tinha para o sistema. Tentamos retomar isso em 2003, mas ainda não fechamos o ciclo. Onde está o estoque de estudo de hidrelétricas, inventários que se faziam historicamente desde que o setor elétrico foi formado e nunca parou? Agora ficou mais complicado. É preciso pegar o rio, todos os seus afluentes e não só o inventário das barragens, mas um estudo integrado da bacia hidrográfica, como é a exigência hoje. É algo que o Ministério Público, mais do que a lei, exige. O estoque de hidrelétricas licenciadas é zero. Agora, as dificuldades são maiores.

Valor: Se não existem hidrelétricas no estoque, a sra. admite a possibilidade de um apagão em 2010, como temem especialistas no setor?

Dilma: Não vai haver apagão nem que a vaca tussa. Temos energia contratada para os próximos cinco anos e duas hidrelétricas muito importantes na carteira: a do rio Madeira, cujo EIA-Rima foi aceito recentemente, e a de Belo Monte. Felizmente, os problemas relativos ao Madeira hoje não são os ruins - um entrave grande de engenharia ou ambiental -, mas os bons - estimular a concorrência para ter um preço muito competitivo de energia, que não seja contaminado pelo aumento de valores das obras de construção ou dos equipamentos, como ocorreu em alguns gasodutos. Temos questões a resolver em Belo Monte, mas o importante é que os dois projetos sejam tratados como essenciais ao país, não como uma política do Ministério de Minas e Energia, mas como questão de Estado.

Valor: Qual é o cronograma para as usinas do Madeira?

Dilma: O meu cronograma é 2011 ou 2012. Acho que só pode ser 2012, mas poderemos entrar com algumas turbinas antes. Vamos tentar licitar o projeto entre o fim deste ano e o início de 2007.

Valor: A discussão sobre a retomada das obras de Angra 3 está madura?

Dilma: Sim, a nossa posição era de que Angra 3 não estava madura [para entrar em operação] até 2010, porque havia um estoque de contratações de fontes mais baratas de energia. Com o último leilão, isso acabou. A partir de agora, entra na pauta do Ministério de Minas e Energia uma discussão clara a respeito não só de Angra 3, mas de um plano de usinas nucleares. Apesar de Angra 3 ter uma importância fundamental, ela não faz verão sozinha. Para ter um nível de eficiência econômica, é preciso ter um conjunto de usinas nucleares. Isso vai entrar em pauta.

Valor: A demanda por investimentos no setor elétrico será atendida primordialmente pelo setor público?

Dilma: Não, faremos parcerias com o setor privado. Temos que botar na cabeça que vamos atrair muitos investimentos externos, também. Há uma mania de dizer que os investidores não estão mais privilegiando o Brasil. Só existe um motivo para isso acontecer: se não crescermos às taxas que eles esperam, de 5%, 6% ao ano - taxas condizentes com o nosso potencial de mercado interno. Não se deve esperar o investimento estrangeiro para crescer. É o inverso. Hoje temos fôlego interno para crescer. Eu vejo investidores internacionais querendo vir ao Brasil. O que mais destaco é o etanol. Têm vindo inúmeros grupos empresariais para fazer investimentos. Outra área é a TV digital.

Valor: O quê na TV digital, em semicondutores?

Dilma: Estamos em um processo para recuperar o tempo perdido. Desmontamos a nossa indústria de microeletrônica e agora os nossos projetos ficaram com um tempo de atraso. Os japoneses estiveram aqui entre os dias 10 e 12. Nós queremos transferência de tecnologia para achar o nosso nicho na indústria de semicondutores. Combinamos que teremos treinamento, com intercâmbio entre a Ceitec (no Rio Grande do Sul) e a Toshiba. Também faremos investimento em "upgrade" tecnológico.

Valor: E a medida provisória com isenção fiscal para a área de semicondutores?

Dilma: Sai em novembro. Poderia sair no fim de outubro, mas diriam que estamos fazendo política eleitoral. O Ministério da Fazenda ainda não encerrou a análise. Essa é uma medida ambiciosa, que vai além do convencional em termos de desoneração tributária, porque é uma desoneração mais competitiva. Estamos delimitando o que é preciso desonerar exatamente para atingir toda a cadeia de semicondutores, mas existem áreas cinzentas. Não é simples delimitar o que está dentro e o que está fora.

Valor: O governo tem falado com grande entusiasmo do etanol. Qual o potencial...

Dilma: Mesmo que o preço do petróleo oscile para baixo, vem aí uma uma grande indústria na próxima década, a de biocombustíveis. O que pode ocorrer no Brasil é a montagem de uma cadeia produtiva baseada em duas pernas: o etanol e o biodiesel/HBio. Estamos botando dinheiro pesado em pesquisas nessas duas frentes. A partir de janeiro de 2008, todos os ônibus, caminhões e veículos movidos a óleo diesel terão que usar o biodiesel. É mercado garantido. Sou 'mico de circo' se isso não gerar riqueza ao país.