Título: Bancos utilizam debêntures para driblar recolhimentos obrigatórios
Autor: Lucchesi, Cristiane Perini e Bautzer, Tatiana
Fonte: Valor Econômico, 23/10/2006, Finanças, p. C1

Os maiores bancos de varejo brasileiros descobriram uma forma de driblar parte do recolhimento de contribuições para o Fundo Garantidor de Crédito, usado para pagar os correntistas em caso de quebra de um banco: emitir debêntures de suas empresas de leasing.

A estratégia, além de reduzir os pagamentos ao FGC, diminui o recolhimento de depósitos compulsórios no Banco Central e impostos. Os bancos usam essas debêntures como alternativa à venda de Certificado de Depósitos Bancários (CDB) aos grandes clientes. Sobre os CDBs, incidem contribuições ao fundo e compulsórios.

Só este ano, os conglomerados financeiros já registraram e entraram com pedido de registro de R$ 44,9 bilhões em debêntures de empresas de leasing na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). No ano passado, o total registrado foi de R$ 26,7 bilhões.

Estas emissões não são vendidas a investidores comuns, mas às tesourarias dos bancos do mesmo grupo da leasing. Os papéis têm prazos longos, de até quinze anos, para os quais não há demanda no mercado de capitais brasileiro. A empresa de leasing recebe o dinheiro da tesouraria do banco, que por sua vez coloca as debêntures em sua carteira. A leasing fica então com os recursos necessários à sua operação e empresta o resto do caixa à tesouraria do banco de volta, por meio de um Depósito Interfinanceiro de prazo geralmente curto, não maior do que 30 dias. O dinheiro voltou à tesouraria do banco, que está agora também com as debêntures.

Neste momento, o banco está preparado para captar usando como lastro as debêntures da empresa de leasing. A instituição faz com o cliente uma operação de venda de debêntures com compromisso de recompra (repo). Ou seja, o cliente compra a debênture por R$ 100, por exemplo, e o banco garante recomprá-la por R$ 102 num prazo acertado, garantindo um juro de 2%, portanto. Toda essa volta é necessária porque os bancos não podem emitir debêntures.

Os prazos dessas operações de recompra são em sua maioria curtos: de três meses a um ano, parecidos com os de um depósito a prazo. Às vezes o prazo fica em aberto. Os principais compradores são os grandes clientes: empresas, pessoas físicas muito ricas (private banking) e fundos de pensão. Como são muito complicadas, as operações não são oferecidas na rede de agências.

Os clientes também têm vantagens: recebem um rendimento maior que o de um CDB, justamente porque a modalidade criada escapa à incidência de contribuição para o FGC, de 0,03% sobre o valor total, e aos 15% de depósito compulsório sem remuneração. O banco divide o "ganho" de não ficar com esses recursos parados no FGC e no Banco Central com seus principais financiadores. Para o grande depositante, com milhões para aplicar, a cobertura pelo seguro de depósito não importa muito: o total garantido é de apenas R$ 20 mil hoje e R$ 60 mil a partir do ano que vem.

Segundo um diretor de uma grande instituição, a redução à metade da contribuição ao FGC - de 0,03% para 0,015% a partir de janeiro do ano que vem - deve desacelerar as emissões de debêntures das leasings.

Há ainda ganhos fiscais dos bancos: os juros pagos pelas empresas de leasing são considerados despesas financeiras e são dedutíveis do Imposto de Renda. Mas esse efeito é secundário.

A maior emissão registrada neste ano é da BFB Leasing (conglomerado Itaú), de R$ 15 bilhões. O ABN AMRO registrou R$ 7,5 bilhões, o Bradesco, R$ 6,5 bilhões, a Dibens Leasing (Unibanco), R$ 5,7 bilhões, e o Panamericano, R$ 250 milhões. O Banco Votorantim está pedindo autorização para emitir R$ 6 bilhões em sua leasing. No ano passado, as emissões de leasing incluíram também BankBoston antes de sua compra pelo Itaú (R$ 1,2 bilhão), Santander (R$ 1,6 bilhão) e Safra (R$ 5 bilhões).

O Valor confirmou os detalhes da operação com executivos de bancos e gestores de fundos que conhecem a prática. Eles concordaram em explicar os detalhes sem que fossem identificados. Consultados, Itaú, ABN AMRO, Safra, Santander e Unibanco não comentaram o assunto, embora informem oficialmente que as captações são destinadas a financiar operações de leasing. Bradesco e Votorantim disseram que não poderiam comentar, porque estão em "período de silêncio" relativo às suas últimas emissões, ainda em andamento.

Os programas de debêntures são muito superiores ao total necessário para financiar concessões de leasing. Esse tipo de crédito cresceu, mas nem se aproxima do total emitido. Segundo a Associação Brasileira das Empresas de Leasing (Abel), o valor presente da carteira total de leasing do mercado em junho era de R$ 27 bilhões, um crescimento de 57% em relação a junho do ano passado. Só entre o ano passado e este ano, foram registrados e estão sob análise R$ 71,6 bilhões em debêntures de leasing. É importante dizer que o total registrado não necessariamente foi vendido integralmente e que aí estão incluídas operações ainda em andamento. Os bancos não informam quanto já foi vendido.

A emissão das debêntures de leasing foi acelerada em 2005 porque no fim do ano de 2004 uma circular do Banco Central mudou o critério de cálculo de contribuições ao FGC, ampliando o total de contas que entra no cálculo das contribuições.

Segundo o BC, o total de depósitos a prazo no sistema financeiro é de R$ 270 bilhões em agosto, com total exigível de compulsório de R$ 31,6 bilhões. Em junho, o total de depósitos a prazo do sistema era de cerca de R$ 285 bilhões. Consultado sobre as emissões como forma de reduzir o recolhimento de compulsório, o Banco Central informou que preferia não se manifestar sobre regras de compulsório para evitar que as declarações sejam interpretadas como normas.

Além de modificar estatísticas relativas a depósitos, as gigantescas emissões das empresas de leasing distorcem os números do mercado de debêntures. Neste ano, 72,5% representaram captação dos bancos, e não financiamento de empresas. Excluindo as emissões de debêntures do total, o crescimento das captações é menor do que o estimado inicialmente. No ano passado, o total de emissões foi de R$ 12,85 bilhões excluindo as leasings. Neste ano, sem as lesings, o total registrado e em análise não passa os R$ 14,9 bilhões. A maior distorção ocorreu nas captações entre 2004 e 2005, quando o volume total emitido quadruplicou, de R$ 9,6 bilhões em 2004 para R$ 41,5 bilhões no ano passado.