Título: "Falta coragem para enfrentar o policiamento ideológico"
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 24/10/2006, Política, p. A8

O ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga reconhece o baixo apelo das idéias liberais no momento, mas acredita que elas voltarão a ganhar espaço no país. "Mudanças ocorrerão aos poucos, principalmente quando se perceber que o sistema atual não é muito eficaz em promover o desenvolvimento", diz Fraga, para quem o crescimento dos gastos públicos chegou ao limite. Sócio da Gávea Investimentos, ele aposta que, se o governo atual for reeleito, também vai tentar um ajuste das contas públicas, "a não ser que eles sejam loucos ou suicidas".

Fraga também faz a defesa das privatizações feitas no governo Fernando Henrique Cardoso, lembrando que a venda do sistema de telecomunicações foi um sucesso. "O setor em que houve problemas foi justamente aquele em que a privatização foi incompleta, que foi o elétrico. A demonização das privatizações que hoje vivemos não faz o menor sentido e precisa ser refutada com os fatos."

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: A agenda liberal está em baixa no país. Por que ninguém defende as privatizações ou uma abertura comercial mais ampla na campanha?

Arminio Fraga: A explicação clássica é que essas medidas beneficiam a maioria silenciosa, mas prejudicam pequenos grupos organizados que gritam muito, como nos casos da abertura comercial e da privatização. Na reforma da Previdência é parecido. Vários de nossos melhores pesquisadores têm dito que o país tem políticas que privilegiam os mais velhos em detrimento das crianças. Os mais velhos gritam, mas as crianças não gritam. E não votam.

Valor: Que outros fatores explicam a falta de apelo no momento?

Fraga: No caso do Brasil, e da América Latina em geral, há uma avaliação de que se tentou por aqui aplicar o liberalismo e que isso deu errado, quando na verdade sequer o Consenso de Washington foi adotado. E há uma questão cultural importante, que remonta às nossas raízes ibéricas. As pessoas gostam da ilusão de que dá para planejar tudo. Quando se propõe que se soltem um pouco as coisas, que se leve mais em conta as forças de mercado, há uma insegurança. O brasileiro gosta do Estado.

Valor: Que medidas de fato liberais foram adotadas no Brasil nos últimos anos?

Fraga: Uma delas foi a abertura da economia, iniciada ainda no governo Collor. Outra importante foram as privatizações no governo Fernando Henrique Cardoso. Um trabalho conjunto dos governos passado e atual foi a nova Lei de Falências. Quando posta em prática, esta lei fará com que o mercado funcione melhor e reduzirá significativamente as perdas sociais do processo de falência, como o desemprego e a ociosidade de máquinas. Uma outra medida de desregulamentação que teve resultados fantásticos, e que nós tomamos quando eu estava no BC, permitiu que surgissem os correspondentes bancários, o que por sua vez possibilitou o aproveitamento das agências de correios e as lotéricas como bancos. Como conseqüência, após algum tempo dobrou o número de postos bancários no país. O sindicato dos bancários era inimigo da medida. Fui criticado no Congresso pelo deputado Ricardo Berzoini e respondi que entendia a posição dele, defendendo a sua categoria, mas expliquei que nós estávamos pensando no povo como um todo. Essa foi uma medida de inspiração liberal e impacto social positivo.

Valor: O senhor acredita que as idéias mais liberais voltem a ganhar espaço no país?

Fraga: Acho que há espaço sim. Nós temos um Estado agigantado, com uma Previdência inchada. Nós gastamos 13% do PIB com aposentadorias, o que, comparando com a estrutura etária da população, beira o inacreditável. A carga tributária se aproxima dos 40% do PIB. Mas a mudança de atitude com relação ao liberalismo não virá da noite para o dia. Adam Smith que o diga. Mudanças ocorrerão aos poucos, principalmente quando se perceber que o sistema atual não é muito eficaz em promover o desenvolvimento. E eu sou liberal, mas não sou um liberal radical. Acho que o governo tem papel a cumprir na economia, em segmentos como educação, saúde, segurança e regulação.

Valor: O senhor é favorável à privatização dos bancos públicos federais, como o BB e a Caixa?

Fraga: Defendi em artigo em dezembro de 1994 a privatização dos bancos estaduais e concluí que, a princípio, também se deveria privatizar os bancos federais. Não se trata necessariamente de vender o controle a uma instituição privada. Uma alternativa que foi defendida no governo Fernando Henrique foi transformar os bancos federais em empresas abertas dotadas de boa governança. Eu continuo com essa posição. É importante notar que a privatização foi muito bem sucedida no caso das telecomunicações, por exemplo. O setor em que houve problemas foi justamente aquele em que a privatização foi incompleta, que foi o elétrico. A demonização das privatizações que hoje vivemos não faz o menor sentido e precisa ser refutada com os fatos.

Valor: E a Petrobras? A empresa deveria ser privatizada?

Fraga: Vale aqui o argumento aplicado aos bancos. Fernando Henrique decidiu não privatizar o controle da Petrobras, mas transformá-la em empresa pública transparente, para que não fosse capturada nem pelo poder público nem por interesses privados. Foi um bem-sucedido esforço de gestão, cujos frutos nós saboreamos até hoje.

Valor: O senhor acha que novas privatizações só tendem a ocorrer a partir de 2010, uma vez que os dois candidatos têm dito que não pretendem vender estatais?

Fraga: Espero que na hora H o próximo presidente perceba que privatizar certas atividades poderá trazer ganhos sociais. Um exemplo são os setores de água e saneamento. Os governos estaduais e municipais poderiam alavancar recursos privados em prol de um aumento de investimentos nesses setores, onde as carências são imensas. Falta clareza nas regras do jogo e coragem para enfrentar um certo policiamento ideológico que ainda tem muito peso.

Valor: Mas muitos acusam o governo passado de ter vendido as empresas na bacia das almas.

Fraga: As vendas foram feitas através de mecanismos transparentes de leilão, o que garante o maior preço possível. Se depois da privatização a gestão das empresas melhorou e, em alguns casos como o da Vale, o preço de seus produtos subiu, nada mais natural que um aumento no valor de mercado da empresa. Aliás, isso é o que se espera e se deseja.

Valor: Muitos economistas dizem que o principal problema é fiscal, que é necessário estancar o crescimento dos gastos para o país crescer mais. O governo, porém, não parece convencido da necessidade de um ajuste mais forte.

Fraga: Acho que, se reeleito, o governo vai tentar um ajuste das contas públicas, a não ser que eles sejam loucos ou suicidas. E aí não se trata de uma questão "liberalismo versus estatismo", é uma questão contábil mesmo.

Valor: Chegou-se então ao limite o crescimento dos gastos públicos? O tamanho do Estado é o grande entrave ao crescimento?

Fraga: Me parece que sim. Um país com nosso nível de desenvolvimento não pode arrecadar mais do que 40% do PIB sob pena de estimular ainda mais a informalidade, reduzir a competitividade do setor produtivo e desestimular o investimento. E, como muitos não pagam impostos, a carga sobre os que pagam é ainda maior e mais nociva.

Valor: O Brasil deveria reduzir unilateralmente as alíquotas de importação para abrir mais a economia e aumentar a eficiência?

Fraga: Em tese sim, mas os governos tipicamente ignoram esses benefícios que dependem de avanços unilaterais, pois crêem que precisam guardar suas fichas para negociar reduções no protecionismo dos parceiros, um ponto razoável, mas que não significa que se deve esperar para sempre. Vale registrar que não temos problemas apenas com o nível médio de nossas tarifas de importação, mas também com sua grande dispersão setorial, que é fruto muito mais de uma história de lobbies do que de uma criteriosa análise de custo benefício social. (SL)