Título: Iraque corre o risco da divisão territorial
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 24/10/2006, Opinião, p. A12

A guerra civil iraquiana começou a desenhar uma cisão geográfica e a despedaçar o país em enclaves xiitas, sunitas e curdos. A violência ensangüentou a cidade de Balad, ao norte de Bagdá, onde a maioria sunita convive com um bolsão xiita - já não se sabe por quanto tempo. Ao sul de Bagdá, as temíveis milícias do Exército Mehdi, do clérigo radical Muqtada al Sadr, tomaram a cidade de Amarah e a transformaram em um território liberado, o que não encerrou a disputa entre facções. Desta vez, xiitas lutaram contra seus irmãos de fé, de milícias rivais. Há confrontos em todas as regiões, acelerando a migração de centenas de milhares de iraquianos em busca de proteção de suas comunidades, enquanto que o número de mortos cresce rapidamente - 43 por dia. Em outubro, o Exército americano teve também seu maior número de baixas que, no total, em 44 meses de ocupação, se aproxima de 2.800 soldados.

O governo xiita do premiê Nuri al Maliki tornou-se incapaz de controlar o que quer que seja. As esperanças nele depositadas após as eleições e após o difícil acordo para escolher o parlamento entre as principais forças políticas do país ruiram como um castelo de areia. A trégua proposta pelo novo governo, com anistia política para os iraquianos que pegaram em armas, não foi sequer levada a sério. Sem um desarmamento das milícias o Estado iraquiano não tem condições de se reerguer e, para isso, é preciso que as forças de segurança domésticas consigam impor a paz e um mínimo de funcionamento da economia. Isto está longe de acontecer, apesar das reiteradas esperanças americanas em uma rápida melhoria. Ao contrário, o que se vê é uma deterioração aguda das condições políticas e de vida da população.

O recrudescimento da violência custa caro para o presidente George W. Bush. Os republicanos, que estão ameaçados de perder a maioria na Câmara e no Senado, demonstram cada vez mais sua insatisfação. Bush aparentemente não tem um plano B e resiste às pressões para que se estabeleça um cronograma para a retirada das tropas americanas do Iraque. Esta, porém, não é a única opção que tem sido ventilada por democratas e republicanos - e há sérias dúvidas de que seja mesmo uma saída. Outra delas, que ganha corpo em Washington, é ceder diante do que parece ser a onda de violência incontrolável e aceitar a divisão do país entre xiitas, curdos e sunitas, como sugere preliminarmente uma comissão parlamentar co-presidida pelo ex-secretário de Estado durante o governo de Bush pai, James Baker. Ela propõe também algo impensável para os EUA há um ano - negociações com o Irã e a Síria para encontrar uma solução para o Iraque.

A espiral de violência já está deixando claras marcas na divisão territorial. "Sunitas fogem para áreas sunitas, xiitas, para xiitas e os curdos para o norte do país", afirma um relatório do Instituto Brookings. "Cidades que eram misturadas se tornaram xiitas ou sunitas". Ratificar esta situação será uma confissão aberta da completa derrota dos planos americanos para o país e provavelmente também uma receita para o caos. A principal, e hoje única, riqueza real do Iraque é o petróleo e ele se encontra principalmente nos enclaves curdo e xiita. Os curdos podem executar um separatismo de fato, açulando as rivalidades com a vizinha e hostil Turquia. Os xiitas buscariam apoio militar e logístico no vizinho Irã, ao passo que os sunitas teriam de se apoiar na Síria e em regimes árabes moderados. Esse é um cenário que guarda trágicas semelhanças com o da guerra civil libanesa, e nada de bom pode se esperar dele.

A situação iraquiana piora a cada dia, sem que o governo constituído e as tropas americanas consigam escorar ainda que seja um esboço de Estado. O governo dividiu-se em feudos, e os policiais fardados agem freqüentemente em nome dos objetivos de milícias xiitas, que aterrorizam seus inimigos. Em algumas áreas, predomina o mais puro banditismo. Para os soldados americanos, é um pesadelo. Suas tropas são alvos móveis de milícias rivais, entre as quais não é possível fixar com clareza quem são os aliados ou os inimigos. O momento político para Bush aumentar o número de tropas no Iraque já passou e ele dificilmente tentará ou conseguirá fazer isso. A retirada das tropas, por outro lado, seria um vexame coberto com sangue. Dar um prazo para que as tropas locais consigam tomar conta do país, como parece ser a intenção do governo Bush, significa mais do mesmo - uma vez aberta, não há como fechar a caixa de Pandora iraquiana.